Por boa parte
do tempo em que morei em Washington, da janela do meu apartamento eu via a
imagem acima.
Uma casa de
dois andares pressionada por dois gorilas de prédios. A construtora dos
prédios havia tomado todo o quarteirão, menos aquela casa, que ali permanecia
excêntrica e anacrônica. Fiquei curioso. Por que só aquela construção não havia
sido demolida para dar espaço a novos projetos milionários? O dono de uma loja
de conveniência do outro lado da rua me deu a resposta: por causa do direito à
propriedade privada. A construtora que comprou todos os imóveis do
quarteirão não conseguiu convencer um proprietário específico a se desfazer do
seu. Nem os US$2 milhões que ela supostamente ofereceu conseguiram derrubar o
direito do dono.
Difícil
imaginar o motivo da recusa. Aquele era um trecho antes habitado quase que
exclusivamente por pessoas de baixa renda. Não deve ter sido difícil fazer uma
proposta que parecesse irrecusável a cada morador. Por que apenas um sujeito
resistiu? Queria dizer que era por um passado romântico como o do velhinho
do UP. Mas a coisa foi mais ordinária. Uns me disseram que ele pretendia
abrir um negócio. Outros, que estava apostando na valorização futura do seu
imóvel.
O bonito da
história é que não importa o motivo. Ele não teve que se justificar perante um
tribunal ou um conselho comunitário. Não teve que demonstrar como a preservação
da sua casa geraria externalidades positivas para o resto da cidade. Bastou
dizer "não, obrigado". A propriedade privada lhe serviu de escudo.
Nem todo o poder econômico foi capaz de retirar a casa do seu dono. E lá a casa
se mantém: feia, desperdiçada, debochada, mas de pé como um dedo do meio aos
que quiseram destruí-la.
Iniciativa
privada não é a mesma coisa que propriedade privada. A sua propriedade
serve de barreira às ambições invasivas da minha iniciativa. O escritor G.K.
Chesterton sabia disso. Ele escreveu em The Outline of
Sanity de 1927 que "um batedor de carteiras é obviamente um
fomentador da iniciativa privada. Mas seria talvez um exagero dizer que um
batedor de carteiras é um fomentador da propriedade privada."
De batedores
de carteira em 1927 para Eike Batista em 2012. No ano passado, o município de
São João da Barra, RJ começou
a desapropriação de 401 propriedades (número oficial) numa área
de 70 milhões de metros quadrados. Famílias e fazendas deveriam ser
removidas para que o terreno fosse ocupado pelos empreendimentos do grupo EBX.
Peço que vejam esse vídeo (4:19) mostrando o processo de remoção:
No otimismo de
um ano atrás, o sujeito responsável pelo processo de desapropriação afirmava
que a instalação da EBX traria benefícios para os agricultores e para seus
filhos — o conhecido argumento de que para se fritar uma omelete é preciso
antes quebrar alguns ovos. E agora, tantos ovos quebrados e nem
vai haver óleo para
fritar a omelete.
A
apresentadora do telejornal do vídeo ainda apresenta o problema como um dilema
entre "produtores rurais que vivem ali" e o
"desenvolvimento batendo à porta". Um verbo mais apropriado seria
"arrombando". Bater à porta é o costume de uma civilização que
entende os limites da propriedade privada, de visitantes que esperam pelo
convite do dono da casa para poderem entrar. Onde se bate à porta, empresas têm
de negociar com os proprietários, não com o governo do estado. Onde se bate à
porta, a polícia age em proteção à nossa propriedade, não a serviço de quem
paga mais. Onde se bate à porta, uma única casa pode ser a exceção aos mais
magníficos projetos de construção civil. Onde se bate à porta não se batem
carteiras.
Políticos
prometem cestas e bolsas para os pobres; prometeram
"auxílio-produção" aos desapropriados. Mas negam aos pobres
exatamente aquilo que pode fazer com que eles não dependam mais de cestas nem
de bolsas: o direito de serem donos das suas coisas. Em vez disso, os pobres
permanecem dependentes de favores na época de eleições, de decisões políticas
tomadas em gabinetes fechados, da boa vontade do judiciário e de deliberações
intermináveis travadas em conselhos comunitários.
No vídeo, o
Sr. Manoel Toledo faz (2m30) um comovente depoimento de dignidade através da
produção: "a única coisa que eu não vou aceitar é sacolão de
comida, que eu nunca precisei de sacolão de comida de ninguém". Dar
ao pobre o direito de ser dono de suas coisas é lhe conferir o direito de não
ser dominado, chantageado. "Os direitos de propriedade podem munir uma
pessoa com segurança pessoal, escreve John Tomasi em Free
Market Fairness, "cidadãos com esses direitos sabem que eles podem se
agarrar a alguma coisa que não pode ser tirada deles."
Ao investigar
as consequências econômicas da falta de direito de propriedade entre as
populações mais pobres do continente, Hernando de Soto se projetou como o
mais influente economista sul-americano da sua geração. Só nas terras que os
latino-americanos possuem de fato, mas não de direito, De Soto descobriu que os
pobres da América Latina estavam sentados em cima de quase 10 bilhões de
dólares. Sem título de propriedade, não podiam capitalizar em cima desse valor.
Se o governo
do estado do Rio realmente quiser avançar o bem-estar das famílias pobres, deve
sair da contramão. Em vez de desapropriar terras em favor das empresas mais
ricas do país, deveria expandir projetos de concessão de títulos de propriedade
a moradores das áreas mais pobres do estado. É o que o
Projeto Cantagalo está fazendo em Copacabana. E é o que deveria ser feito
por todo o Brasil.
O problema da
forma que se conduz o capitalismo, dizia Chesterton, "é que se tem pregado
a expansão dos negócios em vez da preservação dos pertences. O melhor que
conseguem fazer é disfarçar o batedor de carteiras com as virtudes do
pirata."
No Brasil de Eike
e na Inglaterra de Chesterton, o mesmo problema esvazia os bolsos e a dignidade
dos pobres: o capitalismo é privilégio dos ricos e o socialismo é a promessa
dos pobres. Chesterton sabia que a solução não era socialismo para todos.
Lembrava que "o comunismo apenas resolve o problema de se bater carteiras
proibindo as carteiras." A solução era, e ainda é, capitalismo para os
pobres. E capitalismo começa com propriedade privada.
Diogo
Costa é presidente do Instituto
Ordem Livre e professor do curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG. Trabalhou com pesquisa em políticas
públicas para o Cato Institute e para a Atlas Economic Research Foundation em
Washington DC. Seus artigos já apareceram em publicações diversas, como O
Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Diogo é Bacharel em Direito pela
Universidade Católica de Petrópolis e Mestre em Ciência Política pela Columbia
University de Nova York. Seu blog: http://www.capitalismoparaospobres.com
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