Por Sergio Reis
Por que os xingamentos à Presidenta são graves? Uma outra
interpretação
A coleção de xingamentos sofridos pela Presidenta Dilma Rousseff
ao longo do jogo de abertura da Copa do Mundo na última Quinta-feira (e
repetidos por pequenos grupos, com intensidade muito menor, em algumas outras
partidas) foi recepcionada de forma polarizada por analistas, intelectuais,
políticos e pela sociedade de forma geral. Se houve muitos que criticaram as
vaias e, especialmente, os impropérios de baixo calão proferidos à Chefe de
Estado brasileiro, outros celebraram ou não deram relevância esse evento, ora
compreendendo-o como uma “saudável” manifestação democrática contra o governo
federal, ora entendendo-o como algo que seria comum no interior de estádios de
futebol – e que, portanto, não mereceria ênfase reflexiva.
Dentre aqueles que objetaram à realização dessas manifestações,
muitos trabalharam a análise do fenômeno a partir de dois registros básicos: 1)
as ofensas mereceriam censura por expressarem palavras indecorosas a uma
mulher; 2) as ofensas mereceriam censura porque vieram de uma elite branca,
reacionária, preconceituosa e incoerente em sua defesa da superioridade
educacional de sua condição de classe, contrabalanceada por sua extrema falta
de polidez em um evento de celebração. É possível, ainda, notar a existência de
um conjunto de opiniões possivelmente situado – ou pelo menos autorreferenciado
– à esquerda do debate institucional, que buscou rejeitar todos os
posicionamentos supramencionados, considerando que tanto a celebração da
atitude de determinados torcedores contra a Presidenta não seriam dignos de
nota, na medida em que nenhum deles seria representativo dos segmentos
efetivamente oprimidos da sociedade brasileira – respectivamente, de modo
geral, pelas classes dominantes, e particularmente pela Copa do Mundo.
Creio ser necessário compreender a questão a partir de um outro
paradigma, de forma a dimensioná-la ainda dentro de um campo progressista, mas
dotado de coerência interna e, ainda, certa vinculação à esfera institucional.
Primeiramente, cabe ponderar que, embora seja sempre necessário a uma justa
reflexão de esquerda a necessidade de contextualização dos espaços, de suas
práticas e de seus valores (de forma a se evitar, na medida do possível, noções
essencialistas de “verdade” e de superioridade axiológica hipostasiada da
realidade material), tal operação não impede a constatação de que o fato de os
estádios de futebol constituírem, correntemente, locais de expressão de uma
certa virilidade – por vezes confundida com comportamentos violentos e
ofensivos – não impede a realização exata da crítica que esses espaços não
sejam, em razão disso, locais de expressão de opressões e de atitudes que se
afastam de qualquer postulado que se pretenda emancipatório. E, por isso mesmo,
merecem a crítica progressista como qualquer outro aspecto de nossa sociedade;
não é possível, simplesmente, suspender nosso juízo a respeito do que ocorre
dentro das quatro linhas ou de quatro paredes, ainda que precisemos compreender
quais sejam seus particulares mecanismos de funcionamento e de interpretação
para que o comentário seja melhor realizado.
Em segundo lugar, é preciso perceber que a crítica aos insultos
realizados à Chefe de Estado brasileira precisa se libertar de raciocínios
eventualmente falaciosos para que seja coerente com seu propósito progressista
(e não necessariamente partidário). Nesse sentido, é necessário colocar que, na
melhor das hipóteses, a condição de mulher de nossa governante e a origem de
classe das violentas reprimendas são fatores agravantes do caso, e não
elementos constituintes. Isso porque as injúrias não seriam um milímetro mais
aceitáveis se nosso presidente fosse homem, nem permitiriam uma leitura mais
condescendente se tivessem vindo, por exemplo, dos beneficiários do Bolsa
Família que estavam no estádio. O ponto não é esse. Na realidade, se é
lamentável que haja toda uma simbologia machista nos procedimentos de objeção
desenvolvidos no interior desses espaços, uma crítica que parta da condição de
mulher de nossa Presidenta como foco do argumento incorre no considerável risco
de, na realidade, estar promovendo uma defesa igualmente machista de nossa
Presidenta, como se, enquanto mulher, fosse ela um sujeito imaterial e
anistoricamente vulnerável, doce e inferior, sofrendo a necessidade de proteção
de nós, homens viris – que podemos suportar a virulência desses opróbios. Esse
tipo de posicionamento, então, se afasta de uma leitura emancipatória porque
também não liberta a mulher como sujeito histórico. Não é essa a tônica da
questão.
Da mesma forma, ter como base para a objeção à censura à
Presidenta a condição de opulência dos VIPs que a realizaram também não resolve
a tensão em questão. Na realidade, o fato de essas repreensões virulentas terem
vindo primordialmente desses sujeitos diz muito sobre nossas elites, suas
incoerências e sua falta de maturidade democrática, mas não exatamente sobre o
absurdo do evento em si. É possível analisar o fato desse prisma, inclusive
como experimento de compreensão sociológica a respeito dos elementos que
compõem, de forma complexa, a nossa sociedade. Mas o fulcro da crítica também
não precisa ser exatamente esse. Isso porque, na realidade, se essas
manifestações tivessem vindo de outros segmentos societais, não seriam elas
mais válidas. Talvez poderíamos ter uma compreensão mais aberta do fenômeno,
eventualmente nos inquietando (ou não) a respeito da existência de uma objeção
de parcelas de cidadãos que foram beneficiados por essas gestões federais que
ocuparam o poder ao longo desses doze anos e que, apesar disso, se opuseram com
tanto vigor à Chefe de Estado. Essa seria uma análise eventualmente válida, que
permitiria com que, possivelmente, melhor entendêssemos até mesmo algumas
contradições desse governo, bem como a intensidade do desejo de melhoria social
desses agrupamentos, de forma a termos mais clareza, talvez, sobre as
complexidades inerentes aos processos de melhoria dos serviços públicos e de
conquista da cidadania. Mas essa chave interpretativa ainda não seria decisiva
para deixarmos de considerar a atitude violenta em comento como algo
intolerável.
Finalmente, ainda com relação ao esquadrinhamento dos principais
comentários efetuados sobre esse evento, é importante entendermos como algumas
interpretações apontadas como à esquerda do governo precisam ou ser
complementadas pelo que gostaria de defender mais adiante, ou sofrer certa
revisão em razão de inconsistências internas. Nesse sentido, em primeiro lugar
é válido fazer a crítica a certo lugar comum contido em alguns desses
argumentos de que a oposição às ignonímias signifique um “governismo infantil”
ou um posicionamento político moderado. Com efeito, essa é também uma
modalidade de raciocínio rigidamente falacioso, compreendido, analiticamente,
como dos tipos “non sequitur” e “ad hominem”, isto é, ora como rejeições
pessoais aos interlocutores que proferirem esse tipo de oposição aos
vitupérios, ora como associações logicamente equivocadas entre os raciocínios
realizados e os posicionamentos políticos desses interlocutores, como se fosse
possível realizar esse tipo de associação automático por constituir a única
possibilidade reflexiva possível. Demonstrarei a seguir que essa construção não
é verdadeira.
Em segundo lugar, é importante descolar a associação intrínseca
que esse tipo de raciocínio faz entre a defesa que é feita da Presidente Dilma
desses ataques odiosos e a ideia de que o processo de realização da Copa do
Mundo não mereça críticas e ponderações profundas. É daí que surge outra
falácia clássica, a “culpa pela associação”, que resume a invalidez de um
argumento por ele poder conter uma correlação com algo ou alguém a quem se
objeta. Pelo contrário, a Copa do Mundo e seus problemas e a violência dos
vitupérios constituem dois fenômenos distintos. Em outras palavras, a crítica à
realização desse evento esportivo (seja no todo, seja na forma com que ocorreu,
seja ainda com relação a determinados e específicos – mas relevantes –
equívocos) não pode corresponder à forma e estratégia que só podem ser
compreendidos como intrinsecamente violentos, tais quais os ocorridos no
Itaquerão em 12 de Junho.
A razão fulcral do porquê que os xingamentos realizados à
Presidenta Dilma Rousseff mereceram uma crítica tão significativa é justamente
o seu significado enquanto ataque ao republicanismo, sendo que a veiculação
dessas manifestações, da forma como ocorreram, em nada fortalecem o sentimento
democrático nacional, pelo contrário. Em outros termos, para que consigamos
compreender como fazermos uma crítica que seja coerentemente progressista a
esse triste episódio, precisamos percebê-lo a partir de um duplo e inseparável
encaminhamento analítico: 1) o significado desse tipo de invectiva contra um
Chefe de Estado; 2) o significado dessa maneira de realização de uma crítica
para a democracia.
No que se refere ao primeiro aspecto, um aspecto reflexivo
necessário é a compreensão, na realidade presidencialista brasileira, de que em
um sistema presidencialista de governo, como o brasileiro, possuímos uma única
figura pública, o Presidente da República, que possui um papel duplo: Chefe de
Governo e Chefe de Estado. Enquanto Chefe de Governo, o Presidente expressa um
projeto político-partidário, uma visão específica e legítima a respeito das
políticas públicas, de sua formulação, de sua implementação, de suas
prioridades. Enquanto Chefe de Estado, no entanto, seu papel também é político,
mas se vincula a um outro conjunto de questões, com pretensão suprapartidária,
na medida em que se correlacionam à representação da cidadania, da nação, da
sociedade brasileira como um todo. Em outras palavras, o Chefe de Estado existe
enquanto propósito de superação das clivagens que marcam uma dada realidade
sócio-histórica; ele é a incorporação personalizada (porque existe, dentro do
projeto de Estado-Nação que ainda vigora, a partir de uma pessoa ou de um
conjunto de pessoas, como ocorre ou ocorreu inclusive em alguns países
socialistas), o “embodiment” de um país.
Dilma Rousseff, naquele dia, não atuava especificamente como
Chefe de Governo, ou como liderança exponencial do Partido dos Trabalhadores.
Dilma era nossa Chefe de Estado, nossa autoridade máxima representativa, ou o
Brasil em ação como organização que dá início à realização de um evento de
proporções globais; um acontecimento de política externa, um momento de
manifestação, na arena internacional, do nosso país – acontecimento
especialmente peculiar por ocorrer em nosso território. Por mais que pareça
abstrato, o ponto é que todos aqueles urros e verbalizações vexatórias
significaram, naquele contexto, uma rejeição ao Brasil, à sua
institucionalidade e sua história. Evidentemente, ficaria mais fácil de se
perceber o porquê de tais atos serem tão vergonhosos se em nosso país
existissem duas figuras distintas a representar esses dois papéis. Isso não
significa, evidentemente, fazer uma defesa de uma instituição absolutamente
anacrônica como a Monarquia. Nem a proposição de um esquema
semi-presidencialista, como o francês (que possui um Presidente e um
Primeiro-Ministro). O ponto é que, de fato, a compreensão a respeito do tema
exige uma finesse, de uma sensibilidade que, obviamente, não está à disposição
de nossas elites (e talvez de parte considerável de nossa sociedade, lato
sensu).
Essa consideração, então, se liga ao segundo ponto de minha
defesa, que se opõe aos xingamentos proferidos por entender que eles em nada
significam a realização saudável da democracia, como quereriam alguns. Pelo
contrário, são um sinal muito claro da falta de amadurecimento democrático – e,
no limiar, de consciência de nação e de humanidade – por parte de todos aqueles
que insultaram a Presidenta. Há toda uma confusão a respeito do significado do
fazer democrático, de seus momentos e procedimentos constitutivos. Não há
dúvida, para mim, de que a democracia se constitui mediante lutas, tensões,
manifestações de posicionamento em espaços públicos. Além disso, é preciso
entendê-la de modo densificado, para extravasarmos a leitura (elitista) que a
associa meramente às eleições. É condição necessária para a consolidação
democrática, então, que o direito ao dissenso seja assegurado, inclusive nas
ruas e em quaisquer espaços públicos (inclusive e em especial nas mídias,
evidentemente). Apesar das polarizações constituintes, isso nada tem a ver com
violência, com preconceito, com sexismo, com autoritarismo e com qualquer tipo
de prática que venha a significar o vilipêndio da dignidade humana.
É tanto nesse sentido como no anterior, então, que qualquer um
que se preze deve manifestar seu repúdio mais absoluto ao que ocorreu na última
Quinta-feira e em vários outros momentos ao longo destes primeiros dias de Copa
do Mundo. A Presidenta da República, enquanto Chefe de Estado, é figura
institucionalmente representante de todos os brasileiros, inclusive os
oprimidos. O sentido republicano desse instituto é justamente o de dizer
respeito a todos os cidadãos. Qualquer ataque a ele constitui um achaque à
cidadania. E, em um país dotado de níveis de desigualdade como o Brasil,
qualquer golpe à cidadania expressa, sim, contextualmente, um prejuízo e um acinte
aos setores subalternos e uma celebração do privilégio, da construção da
nacionalidade por castas, da meritocracia censitária. Ao mesmo tempo, não é
possível pensar em como fortalecer a democracia por meio de seu negativo, o
autoritarismo. Não há como considerar como saudável ou interessante a promoção
de manifestações que contenham, em seu interior, a negação da civilidade que
marca o pacto democrático entre os elementos da sociedade. A tensão entre os
interesses de classe ou a vocalização de qualquer sorte de descontentamentos
com governantes eleitos nada tem a ver, portanto, com o que ocorreu na abertura
da Copa. Da mesma forma que não há validade democrática em certo clamor pelo
“direito de ser preconceituoso” (naquilo que é travestido, no mundo do humor,
como o “direito de ser politicamente incorreto”), não há validade republicana
no desejo de se usufruir de um “direito de ser autoritário”, traduzido em um
“direito de não reconhecer instituições”.
Se não estamos, enfim, em vias de se constituir um projeto
transnacional de realização da emancipação humana em um mundo pós-republicano,
pós-institucional, pós-estatal e pós-democrático-liberal (que permitiriam,
talvez com que fizéssemos uma crítica radical às formas de poder de nosso
tempo, sem que isso significasse abraçarmos a tirania), devemos defender, neste
momento, a República e a Democracia como garantias para a consolidação de nossa
tortuosa cidadania, ainda muito distante de existir em níveis mínimos
aceitáveis. Além disso, a crítica precisa ser posicionada em seus próprios
termos, para que seja coerente com uma leitura progressista e emancipatória que
nos leve a uma compreensão produtiva de eventos como o ocorrido. Compactuar com
a violência, real ou simbólica, significa depor em contrário a esses postulados
e se colocar ao lado da opressão mais pérfida, capaz de gerar cenários os mais
danosos para nosso país – seja do ponto de vista da guerra eleitoral, seja com
relação à própria forma de configuração das relações sociais, caso normalizemos
os óbices que relatamos como maneiras “naturais” de se demonstrar insatisfação
com aquilo a que nos opusermos.
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