quarta-feira, 18 de junho de 2014

Por que os xingamentos à Presidenta são graves? Uma outra interpretação

Por Sergio Reis
Por que os xingamentos à Presidenta são graves? Uma outra interpretação
A coleção de xingamentos sofridos pela Presidenta Dilma Rousseff ao longo do jogo de abertura da Copa do Mundo na última Quinta-feira (e repetidos por pequenos grupos, com intensidade muito menor, em algumas outras partidas) foi recepcionada de forma polarizada por analistas, intelectuais, políticos e pela sociedade de forma geral. Se houve muitos que criticaram as vaias e, especialmente, os impropérios de baixo calão proferidos à Chefe de Estado brasileiro, outros celebraram ou não deram relevância esse evento, ora compreendendo-o como uma “saudável” manifestação democrática contra o governo federal, ora entendendo-o como algo que seria comum no interior de estádios de futebol – e que, portanto, não mereceria ênfase reflexiva.

Dentre aqueles que objetaram à realização dessas manifestações, muitos trabalharam a análise do fenômeno a partir de dois registros básicos: 1) as ofensas mereceriam censura por expressarem palavras indecorosas a uma mulher; 2) as ofensas mereceriam censura porque vieram de uma elite branca, reacionária, preconceituosa e incoerente em sua defesa da superioridade educacional de sua condição de classe, contrabalanceada por sua extrema falta de polidez em um evento de celebração. É possível, ainda, notar a existência de um conjunto de opiniões possivelmente situado – ou pelo menos autorreferenciado – à esquerda do debate institucional, que buscou rejeitar todos os posicionamentos supramencionados, considerando que tanto a celebração da atitude de determinados torcedores contra a Presidenta não seriam dignos de nota, na medida em que nenhum deles seria representativo dos segmentos efetivamente oprimidos da sociedade brasileira – respectivamente, de modo geral, pelas classes dominantes, e particularmente pela Copa do Mundo.
Creio ser necessário compreender a questão a partir de um outro paradigma, de forma a dimensioná-la ainda dentro de um campo progressista, mas dotado de coerência interna e, ainda, certa vinculação à esfera institucional. Primeiramente, cabe ponderar que, embora seja sempre necessário a uma justa reflexão de esquerda a necessidade de contextualização dos espaços, de suas práticas e de seus valores (de forma a se evitar, na medida do possível, noções essencialistas de “verdade” e de superioridade axiológica hipostasiada da realidade material), tal operação não impede a constatação de que o fato de os estádios de futebol constituírem, correntemente, locais de expressão de uma certa virilidade – por vezes confundida com comportamentos violentos e ofensivos – não impede a realização exata da crítica que esses espaços não sejam, em razão disso, locais de expressão de opressões e de atitudes que se afastam de qualquer postulado que se pretenda emancipatório. E, por isso mesmo, merecem a crítica progressista como qualquer outro aspecto de nossa sociedade; não é possível, simplesmente, suspender nosso juízo a respeito do que ocorre dentro das quatro linhas ou de quatro paredes, ainda que precisemos compreender quais sejam seus particulares mecanismos de funcionamento e de interpretação para que o comentário seja melhor realizado.
Em segundo lugar, é preciso perceber que a crítica aos insultos realizados à Chefe de Estado brasileira precisa se libertar de raciocínios eventualmente falaciosos para que seja coerente com seu propósito progressista (e não necessariamente partidário). Nesse sentido, é necessário colocar que, na melhor das hipóteses, a condição de mulher de nossa governante e a origem de classe das violentas reprimendas são fatores agravantes do caso, e não elementos constituintes. Isso porque as injúrias não seriam um milímetro mais aceitáveis se nosso presidente fosse homem, nem permitiriam uma leitura mais condescendente se tivessem vindo, por exemplo, dos beneficiários do Bolsa Família que estavam no estádio. O ponto não é esse. Na realidade, se é lamentável que haja toda uma simbologia machista nos procedimentos de objeção desenvolvidos no interior desses espaços, uma crítica que parta da condição de mulher de nossa Presidenta como foco do argumento incorre no considerável risco de, na realidade, estar promovendo uma defesa igualmente machista de nossa Presidenta, como se, enquanto mulher, fosse ela um sujeito imaterial e anistoricamente vulnerável, doce e inferior, sofrendo a necessidade de proteção de nós, homens viris – que podemos suportar a virulência desses opróbios. Esse tipo de posicionamento, então, se afasta de uma leitura emancipatória porque também não liberta a mulher como sujeito histórico. Não é essa a tônica da questão.
Da mesma forma, ter como base para a objeção à censura à Presidenta a condição de opulência dos VIPs que a realizaram também não resolve a tensão em questão. Na realidade, o fato de essas repreensões virulentas terem vindo primordialmente desses sujeitos diz muito sobre nossas elites, suas incoerências e sua falta de maturidade democrática, mas não exatamente sobre o absurdo do evento em si. É possível analisar o fato desse prisma, inclusive como experimento de compreensão sociológica a respeito dos elementos que compõem, de forma complexa, a nossa sociedade. Mas o fulcro da crítica também não precisa ser exatamente esse. Isso porque, na realidade, se essas manifestações tivessem vindo de outros segmentos societais, não seriam elas mais válidas. Talvez poderíamos ter uma compreensão mais aberta do fenômeno, eventualmente nos inquietando (ou não) a respeito da existência de uma objeção de parcelas de cidadãos que foram beneficiados por essas gestões federais que ocuparam o poder ao longo desses doze anos e que, apesar disso, se opuseram com tanto vigor à Chefe de Estado. Essa seria uma análise eventualmente válida, que permitiria com que, possivelmente, melhor entendêssemos até mesmo algumas contradições desse governo, bem como a intensidade do desejo de melhoria social desses agrupamentos, de forma a termos mais clareza, talvez, sobre as complexidades inerentes aos processos de melhoria dos serviços públicos e de conquista da cidadania. Mas essa chave interpretativa ainda não seria decisiva para deixarmos de considerar a atitude violenta em comento como algo intolerável.
Finalmente, ainda com relação ao esquadrinhamento dos principais comentários efetuados sobre esse evento, é importante entendermos como algumas interpretações apontadas como à esquerda do governo precisam ou ser complementadas pelo que gostaria de defender mais adiante, ou sofrer certa revisão em razão de inconsistências internas. Nesse sentido, em primeiro lugar é válido fazer a crítica a certo lugar comum contido em alguns desses argumentos de que a oposição às ignonímias signifique um “governismo infantil” ou um posicionamento político moderado. Com efeito, essa é também uma modalidade de raciocínio rigidamente falacioso, compreendido, analiticamente, como dos tipos “non sequitur” e “ad hominem”, isto é, ora como rejeições pessoais aos interlocutores que proferirem esse tipo de oposição aos vitupérios, ora como associações logicamente equivocadas entre os raciocínios realizados e os posicionamentos políticos desses interlocutores, como se fosse possível realizar esse tipo de associação automático por constituir a única possibilidade reflexiva possível. Demonstrarei a seguir que essa construção não é verdadeira.
Em segundo lugar, é importante descolar a associação intrínseca que esse tipo de raciocínio faz entre a defesa que é feita da Presidente Dilma desses ataques odiosos e a ideia de que o processo de realização da Copa do Mundo não mereça críticas e ponderações profundas. É daí que surge outra falácia clássica, a “culpa pela associação”, que resume a invalidez de um argumento por ele poder conter uma correlação com algo ou alguém a quem se objeta. Pelo contrário, a Copa do Mundo e seus problemas e a violência dos vitupérios constituem dois fenômenos distintos. Em outras palavras, a crítica à realização desse evento esportivo (seja no todo, seja na forma com que ocorreu, seja ainda com relação a determinados e específicos – mas relevantes – equívocos) não pode corresponder à forma e estratégia que só podem ser compreendidos como intrinsecamente violentos, tais quais os ocorridos no Itaquerão em 12 de Junho.
A razão fulcral do porquê que os xingamentos realizados à Presidenta Dilma Rousseff mereceram uma crítica tão significativa é justamente o seu significado enquanto ataque ao republicanismo, sendo que a veiculação dessas manifestações, da forma como ocorreram, em nada fortalecem o sentimento democrático nacional, pelo contrário. Em outros termos, para que consigamos compreender como fazermos uma crítica que seja coerentemente progressista a esse triste episódio, precisamos percebê-lo a partir de um duplo e inseparável encaminhamento analítico: 1) o significado desse tipo de invectiva contra um Chefe de Estado; 2) o significado dessa maneira de realização de uma crítica para a democracia.
No que se refere ao primeiro aspecto, um aspecto reflexivo necessário é a compreensão, na realidade presidencialista brasileira, de que em um sistema presidencialista de governo, como o brasileiro, possuímos uma única figura pública, o Presidente da República, que possui um papel duplo: Chefe de Governo e Chefe de Estado. Enquanto Chefe de Governo, o Presidente expressa um projeto político-partidário, uma visão específica e legítima a respeito das políticas públicas, de sua formulação, de sua implementação, de suas prioridades. Enquanto Chefe de Estado, no entanto, seu papel também é político, mas se vincula a um outro conjunto de questões, com pretensão suprapartidária, na medida em que se correlacionam à representação da cidadania, da nação, da sociedade brasileira como um todo. Em outras palavras, o Chefe de Estado existe enquanto propósito de superação das clivagens que marcam uma dada realidade sócio-histórica; ele é a incorporação personalizada (porque existe, dentro do projeto de Estado-Nação que ainda vigora, a partir de uma pessoa ou de um conjunto de pessoas, como ocorre ou ocorreu inclusive em alguns países socialistas), o “embodiment” de um país.
Dilma Rousseff, naquele dia, não atuava especificamente como Chefe de Governo, ou como liderança exponencial do Partido dos Trabalhadores. Dilma era nossa Chefe de Estado, nossa autoridade máxima representativa, ou o Brasil em ação como organização que dá início à realização de um evento de proporções globais; um acontecimento de política externa, um momento de manifestação, na arena internacional, do nosso país – acontecimento especialmente peculiar por ocorrer em nosso território. Por mais que pareça abstrato, o ponto é que todos aqueles urros e verbalizações vexatórias significaram, naquele contexto, uma rejeição ao Brasil, à sua institucionalidade e sua história. Evidentemente, ficaria mais fácil de se perceber o porquê de tais atos serem tão vergonhosos se em nosso país existissem duas figuras distintas a representar esses dois papéis. Isso não significa, evidentemente, fazer uma defesa de uma instituição absolutamente anacrônica como a Monarquia. Nem a proposição de um esquema semi-presidencialista, como o francês (que possui um Presidente e um Primeiro-Ministro). O ponto é que, de fato, a compreensão a respeito do tema exige uma finesse, de uma sensibilidade que, obviamente, não está à disposição de nossas elites (e talvez de parte considerável de nossa sociedade, lato sensu).
Essa consideração, então, se liga ao segundo ponto de minha defesa, que se opõe aos xingamentos proferidos por entender que eles em nada significam a realização saudável da democracia, como quereriam alguns. Pelo contrário, são um sinal muito claro da falta de amadurecimento democrático – e, no limiar, de consciência de nação e de humanidade – por parte de todos aqueles que insultaram a Presidenta. Há toda uma confusão a respeito do significado do fazer democrático, de seus momentos e procedimentos constitutivos. Não há dúvida, para mim, de que a democracia se constitui mediante lutas, tensões, manifestações de posicionamento em espaços públicos. Além disso, é preciso entendê-la de modo densificado, para extravasarmos a leitura (elitista) que a associa meramente às eleições. É condição necessária para a consolidação democrática, então, que o direito ao dissenso seja assegurado, inclusive nas ruas e em quaisquer espaços públicos (inclusive e em especial nas mídias, evidentemente). Apesar das polarizações constituintes, isso nada tem a ver com violência, com preconceito, com sexismo, com autoritarismo e com qualquer tipo de prática que venha a significar o vilipêndio da dignidade humana.
É tanto nesse sentido como no anterior, então, que qualquer um que se preze deve manifestar seu repúdio mais absoluto ao que ocorreu na última Quinta-feira e em vários outros momentos ao longo destes primeiros dias de Copa do Mundo. A Presidenta da República, enquanto Chefe de Estado, é figura institucionalmente representante de todos os brasileiros, inclusive os oprimidos. O sentido republicano desse instituto é justamente o de dizer respeito a todos os cidadãos. Qualquer ataque a ele constitui um achaque à cidadania. E, em um país dotado de níveis de desigualdade como o Brasil, qualquer golpe à cidadania expressa, sim, contextualmente, um prejuízo e um acinte aos setores subalternos e uma celebração do privilégio, da construção da nacionalidade por castas, da meritocracia censitária. Ao mesmo tempo, não é possível pensar em como fortalecer a democracia por meio de seu negativo, o autoritarismo. Não há como considerar como saudável ou interessante a promoção de manifestações que contenham, em seu interior, a negação da civilidade que marca o pacto democrático entre os elementos da sociedade. A tensão entre os interesses de classe ou a vocalização de qualquer sorte de descontentamentos com governantes eleitos nada tem a ver, portanto, com o que ocorreu na abertura da Copa. Da mesma forma que não há validade democrática em certo clamor pelo “direito de ser preconceituoso” (naquilo que é travestido, no mundo do humor, como o “direito de ser politicamente incorreto”), não há validade republicana no desejo de se usufruir de um “direito de ser autoritário”, traduzido em um “direito de não reconhecer instituições”.
Se não estamos, enfim, em vias de se constituir um projeto transnacional de realização da emancipação humana em um mundo pós-republicano, pós-institucional, pós-estatal e pós-democrático-liberal (que permitiriam, talvez com que fizéssemos uma crítica radical às formas de poder de nosso tempo, sem que isso significasse abraçarmos a tirania), devemos defender, neste momento, a República e a Democracia como garantias para a consolidação de nossa tortuosa cidadania, ainda muito distante de existir em níveis mínimos aceitáveis. Além disso, a crítica precisa ser posicionada em seus próprios termos, para que seja coerente com uma leitura progressista e emancipatória que nos leve a uma compreensão produtiva de eventos como o ocorrido. Compactuar com a violência, real ou simbólica, significa depor em contrário a esses postulados e se colocar ao lado da opressão mais pérfida, capaz de gerar cenários os mais danosos para nosso país – seja do ponto de vista da guerra eleitoral, seja com relação à própria forma de configuração das relações sociais, caso normalizemos os óbices que relatamos como maneiras “naturais” de se demonstrar insatisfação com aquilo a que nos opusermos.

 Do Jornal GGN

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