segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Meu último duelo com D’jango


Por Dag Vulpi

O terror maior para a meninada daqueles dias era principalmente os personagens dali mesmo, residentes naquele, ou em bairros avizinhados. E aquela era uma época propícia para a proliferação daqueles inusitados personagens, afinal estávamos em plenos anos 70, onde, apesar da ditadura, a chance de sucesso nas cidades ainda era maior que a do interior, causando assim um grande êxodo, e dos recantos brasileiros mais longínquos partiam todos os tipos de pessoas, cada uma com suas peculiaridades culturais, porém tendo em comum a esperança de dias melhores nas cidades que as acolheriam.

Minha família estava entre aquelas que tomaram a decisão de tentar mudar o rumo de sua história, e com quase dois anos vivendo aquela nova realidade eu já me sentia um veterano e bastante ambientado.

Nasci, e até então havia morado numa grande fazenda de cultivo de café localizada no interior do Espírito Santo, porém, apesar de ela ser de propriedade do meu avô paterno, não era garantia de um futuro animador para nossa família, pois meus pais eram meeiros da fazenda, e todo o pouco que colhiam era dividido em partes equivalentes com o proprietário das terras, no caso meu avô. Mas este é um assunto que tratarei em detalhes em postagem futura, por hora tratarei de alguns personagens que viviam no Soteco[1] dos anos 70.

O bairro já estava apinhado de pessoas “diferentes”, diferentes aos nossos olhares, nós que éramos as crianças que ali dividiam suas expectativas de um futuro melhor. Ainda assim, a cada caminhão que chegava trazendo uma nova mudança, trazia também a garantia de mais um para a nossa já extensa lista de personagens.

Sentávamos todos do outro lado da rua e ficávamos observando cada um que descia daquelas carrocerias e boleias de caminhão. Não tardava para escolhermos o pseudônimo para o mais novo personagem da rua. Bastava que ele tivesse a infelicidade de, aos nossos olhos, ficar fora dos parâmetros da normalidade. E para isso não seria preciso muita coisa, um penteado, um sorriso, um sotaque, uma frase ou até mesmo um pisar em falso já seria suficiente para cair em desgraça.

Felizmente, para nós, naquela época ainda não existia o tal do politicamente correto, o que hoje seria chamado de bullying, e tudo era visto como brincadeira de crianças, e assim, na falta de opções encontrávamos os motivos para nos divertir.

O bairro já contava com personalidades como: Patronzinho, Maria Sujinha, D’jango, Gabiroba, Maria Taroira, Galerão, Índio, Paulinho Caveirinha etc. Cada um com sua peculiaridade, e diga-se de passagem, uns com mais peculiaridades que os outros.

Estes personagens eram motivo de diversão para alguns, aí eu estou incluso, e medo para outros, algumas crianças ao vê-los mesmo de longe já eram acometidas por ataques de desespero. Havia inclusive aquelas que nem saíam de casa, motivados pelo pavor que sentiam por algumas daquelas personalidades como o sr. D’jango por exemplo.

D’jango era um senhor alto, forte, caladão e sério, sempre com seu habitual chapéu preto e de grandes abas. Ele passava os dias perambulando pelas ruas do bairro. O sujeito não conversava com ninguém, e a molecada não lhe dava tréguas, ele passou a de fato odiar a criançada daquele bairro. Tornando-se assim um “perigo” para os mais pequeninos e os menos avisados.

Por algum motivo desconhecido em determinada ocasião o D’jango passou a frequentar as imediações do colégio Candido Marinho, que era na época o único do bairro, e consequentemente o local obrigatório de concentração de toda a criançada.

Ele sempre aparecia exatamente nos horários das entradas, recreio e saídas. Parece que havia percebido que, ao invés de fugir, a melhor tática era enfrentar a molecada, e esse seu novo comportamento causou preocupação, não somente para os pais, mas também para Dona Glórinha[2], diretora do colégio.

Nós, os veteranos, já com os nossos oito a dez anos de idade já não tínhamos mais medo do tal, e fazíamos questão de sermos os bandidos daquele faroeste psicológico. Por precaução andávamos sempre em grupos e com nossas “armas” de madeira no cinto de nossos shorts, sempre preparados para sacar e disparar o mais rápido possível, assim que o avistássemos.

Era uma loucura, aquela turma de guris “atirando” com o som da boca, e correndo o mais rápido que suas pernas permitiam, e aquele gigante todo desengonçado espumando de raiva e correndo atrás. Mas ele nunca conseguia ser páreo para a velocidade daqueles pestinhas.

Até que um belo dia um daqueles moleques viu-se obrigado a sair sozinho naquelas ruas dominadas pelo abominável D’Jango. O moleque ainda tentou argumentar com sua mãe de que iria até a mercearia mais tarde, pois naquele momento não seria possível, mas a mãe do menino não quis saber de conversa, e não houve outra saída, e assim ele foi, olhou para um lado, para o outro e a rua estava deserta. Gritou o nome do amigo que morava em frente e o silêncio foi a única resposta que ouviu. Não havia outra saída, teria que enfrentar o perigo sozinho. Sequer pegou a “arma”, pois sabia que ela só complicaria ainda mais a situação. Saiu nas pontas dos pés e esgueirando-se pelas cercas das casas vizinhas, a mercearia Sipolatti[3] nunca fora tão distante, mas felizmente chegou são e salvo, entrou, comprou o que sua mãe havia ordenado, e assim que o Tio Severino[4] anotou a despesa na caderneta ele saiu, e conforme a tática que funcionou na vinda ele foi de mansinho pelas beiradas das cercas, porém, desta vez a sorte havia ficado na mercearia, e mal chegou na primeira esquina deparou-se com o mais abominável dos seus pesadelos, isso mesmo, D’Jango o espreitara na ida, e bastou a espera de sua volta para sacramentar de vez o duelo há muito aguardado. Ainda lembro-me do calor daquele líquido que escorreu por minhas pernas abaixo, isso mesmo, o infeliz do moleque era eu, olhei para aqueles olhos vermelhos e sedentos por sangue pela primeira vez, senti que minha hora havia chegado muito antes do imaginado, mas para minha surpresa ele me poupou a vida, insinuou um sorriso amarelo e falho e se moveu para o lado, deixando o caminho livre para mim. Fiquei petrificado, queria desculpar-me, porem a voz não saiu, peguei a reta com toda a velocidade e energia dos meus dez anos, e aquela foi a volta da mercearia mais rápida da minha vida.

Aquele foi o meu último duelo com o D’jango, e de fato, assim como nos faroestes do cinema D’jango foi o artista dessa história.

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