quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A ANTIGA IDEOLOGIA DE SEGURANÇA NACIONAL E O DESENVOLVIMENTO

Flavio Lyra*
O conceito marxista de ideologia é concebido em torno da idéia de “falsa consciência”, ou seja da noção de que conteúdo das ideologias reflete de forma distorcida a realidade, ocultando seu comprometimento com a defesa dos interesses da classe dominante.
O pensamento científico, no campo das ciências naturais, tem nos princípios da coerência interna, propiciado pelo uso da lógica, e na adequação à realidade, derivada do método experimental, os dois fatores primordiais que asseguram sua efetividade, na medida em que permitem um discurso de aceitação universal e eficácia na explicação e aplicação prática dos conhecimentos. Nas questões sociais ainda não foi possível avançar na mesma direção, dada a natureza imprevisível que o livre arbítrio introduz na conduta dos seres humanos e não seria exagero admitir que nunca seja possível atingir tal resultado. Resta, assim, conviver com as ideologias como substitutas do conhecimento “neutro”, propiciado pela ciência no caso dos fenômenos naturais. Fica, assim, para o pensamento social a tarefa crítica de apontar as incoerências internas e os desvios em relação à realidade de que estão eivadas as ideologias que movem nossas condutas.
Na América Latina e no Brasil ainda prepondera uma ultrapassada ideologia de segurança nacional, muito enfatizada durante os anos da Guerra Fria, que coloca como inimigos potenciais da segurança nacional as organizações da classe trabalhadora e os chamados movimentos sociais. Tal concepção foi exacerbada durante os anos da Guerra-Fria, em função da influência da ideologia comunista nas organizações populares, consideradas a grande ameaça à soberania e à segurança nacionais. Com o desaparecimento do comunismo soviético e da Guerra-Fria, as grandes potências ainda não conseguiram inteiramente colocar em cena um novo inimigo externo. A “guerra ao terror” e a ameaça islâmica, proclamadas e difundidas como justificativa para a adoção de medidas contra a autodeterminação dos países economicamente mais frágeis, especialmente dos que têm a ousadia de tentar caminhos próprios para a exploração de suas riquezas, não têm conseguido granjear o apoio internacional necessário para ocupar o vazio deixado com o término da guerra-fria.
Não obstante, a idéia do “inimigo interno” continua muito viva na cabeça dos ideólogos da segurança nacional que, embora nem sempre o explicitem, continuam achando que as organizações populares são o grande inimigo da segurança nacional.  
Falar de soberania nacional e de desenvolvimento nacional, sem ter em conta o alto grau de convergência existente entre os dois conceitos, é certamente cometer um erro interpretativo injustificável.  O exercício da soberania na tomada de decisões no contexto internacional,  arena da luta competitiva pelos interesses nacionais, é fundamental para dar sustentação ao processo de desenvolvimento nacional.  Por conseguinte, uma ideologia de segurança nacional que delegue a potências estrangeiras, a defesa de sua soberania no plano internacional, constitui um obstáculo de monta ao processo de desenvolvimento.
 Caberia indagar, agora, por que o Brasil perdeu a capacidade de levar adiante seu processo de desenvolvimento, inclusive de formular um projeto com esse propósito, e como isto se relaciona com a antiga ideologia de segurança nacional.
A partir da Revolução de 30, com o Getulismo, o Brasil foi capaz de realizar um intenso processo de desenvolvimento, baseado na industrialização, que prosseguiu no pós-guerra até o final dos anos 70. As transformações econômicas realizadas no governo JK (1956-60), entretanto, estiveram associadas a  grande penetração do capital estrangeiro na estrutura produtiva, além de ser altamente concentrador de seus benefícios nas mãos da elite  latifundiário-empresarial, do capital estrangeiro, e da classe média alta que se formou nos grandes centros urbanos.  Os inimigos comuns destes segmentos, por serem capazes de ameaçar seus privilégios, passaram a ser cada vez mais a classe trabalhadora e os movimentos sociais.
No contexto da Guerra-Fria, a antiga ideologia da segurança nacional, praticamente deixou de lado as preocupações com a segurança no plano externo, delegada aos Estados Unidos, e focalizou-se “no inimigo interno”, as organizações de trabalhadores, os intelectuais de esquerda e os movimentos sociais, os quais constituíam real ameaça aos interesses da elite latifundiário- empresarial, do capital estrangeiro e da classe média urbana. Os militares assumiram o poder em 1964, em estreita aliança com esses grupos sociais, e os políticos que passaram a conformar os quadros da ARENA, o partido político constituído pelos militares para apoiar o governo, eram representantes de tais grupos.
 As Reformas de Base defendidas pelo governo de João Goulart, com forte apoio popular, consideradas fundamentais para impulsionar o processo de desenvolvimento eram vistas pela elite proprietária e pelo capital estrangeiro como uma ameaça fatal a seus interesses. Não sem razão, pois, foram relegadas ao esquecimento depois da chegada dos militares ao poder. 
O processo de desenvolvimento sobreviveu, mesmo que crescentemente dependente do capital estrangeiro, durante a maior parte do tempo dos governos militares, e somente recebeu seu golpe mortal, no início dos anos 80, com a crise de endividamento externo gerada pela mudança na política econômica dos Estados Unidos, que elevou as taxas de juros a níveis desconhecidos na história econômica.
 A antiga ideologia de segurança nacional adotada pelos militares era contraditória com os interesses do desenvolvimento nacional, pois não permitia desenvolver uma atuação soberana no plano internacional.  Essa contradição ficaria inteiramente explícita com as mudanças introduzidas na política econômica dos Estados Unidos, que ao priorizarem seus interesses nacionais deixaram seus aliados fiéis na luta contra o comunismo, entregues à própria sorte. A chamada “década perdida”, 1980-90, em que o Brasil, sufocado pelo serviço da dívida externa, defrontou-se com a estagnação e o descontrole inflacionário, esteve intimamente associada às mudanças internas e no plano internacional realizadas pelos Estados Unidos.
As realizações do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND- 1975-79) do governo Geisel, voltadas para sustentar o processo de desenvolvimento, tornaram-se na década de 80, um verdadeiro pesadelo, em face das dificuldades derivadas do  alto endividamento externo em que foi preciso incorrer para materializá-las.
Não é de admirar, pois, a conduta ambígua dos militares no poder, sob a influência da antiga ideologia de segurança nacional.  Por um lado, desfecharam uma guerra aberta contra as organizações de trabalhadores, os intelectuais e os movimentos sociais e, por outro, tentaram fortalecer o poder nacional com a execução dos planos nacionais de desenvolvimento. Acontece que seus aliados internos, pertencentes à elite latifundiário-empresarial, o capital estrangeiro, e a classe média, não constituíam uma base social suficientemente coesa, ampla e comprometida com os interesses nacionais, a ponto de poder dar sustentação política ao processo de desenvolvimento.
Diante da crise que impedia o avanço da acumulação interna de capital, os capitalistas nacionais e estrangeiros, sob a orientação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial (influenciados pelo governo dos Estados Unidos) voltaram-se para privatização das empresas estatais e o desmonte do que restava do estado desenvolvimentista, no que foram muito bem sucedidos, a partir dos anos 90 com o Governo Collor e, em seguida, com os governos de FHC. Como a antiga ideologia da segurança nacional havia permitido destroçar as organizações trabalhistas e os movimentos sociais e contribuído para que a população visse a ação estatal como fator de opressão, a tarefa foi realizada sem maiores resistências.
A realidade mais recente do Brasil é o de uma sociedade que busca, sob a hegemonia da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, retomar o processo de desenvolvimento, num contexto de grave crise internacional e de fortes pressões competitivas no plano das relações econômicas e financeiras. Mas, ainda são fortes as resistências ao avanço desse processo, dada a influência da ideologia neoliberal dominante na classe proprietária, nos meios de comunicação, e em importantes segmentos da classe média, bem como do que restou da antiga ideologia de segurança nacional, especialmente entre os militares.
Muitos estrategistas militares continuam professando a ideologia herdada da guerra-fria, que os impede de perceber que os inimigos externos do desenvolvimento do Brasil são as nações centrais e suas corporações, muitas delas aqui instaladas, que através do controle que exercem sobre os mercados internacionais de bens, de tecnologia e de capitais, bloqueiam a projeção internacional de nossa atividade produtiva. Dita ideologia é prejudicial à constituição de uma base social suficientemente ampla, forte e coesa para dar sustentação a uma nova política de desenvolvimento nacional.
As ameaças à segurança nacional a que estamos sujeitos, já há bastante tempo, provêm das grandes potências do mundo, às quais não interessa um novo e poderoso participante no cenário internacional, e não dos fantasmas do passado. A nova base social para o fortalecimento da soberania nacional e a posta em prática de um projeto nacional de desenvolvimento,  reside nos trabalhadores e nos movimentos sociais, cujos interesses são eminentemente nacionais. As ameaças que rondam nosso território e apontam na direção da internacionalização da Amazônia e do aproveitamento das reservas de petróleo e gás do Pre-sal, por exemplo, são nitidamente de origem internacional e não provenientes das organizações populares.
Não cabe, entretanto, desconhecer que os partidos políticos de base popular que elegeram os últimos três governos padecem de insuficiente entendimento da realidade nacional e acusam desvios em suas condutas que os tornam antipáticos à população, dificultando a coesão nacional em favor de um projeto de desenvolvimento. Esses partidos, também sofrem a influência da ideologia dominante no plano internacional, que defende a entrega do destino dos países aos humores do mercado, atrás dos quais se escondem os interesses das grandes corporações privadas que dominam a economia internacional.
Faz-se, assim necessário criticar e denunciar as condutas inaceitáveis, porém não incorrer no erro de jogar fora a água do banho com a criança, pois a recuperação da soberania nacional e da capacidade do país para desenvolver-se reside, em última instância na massa trabalhadora e nos movimentos sociais, e não na classe proprietária desfigurada e descomprometida com os interesses nacionais que domina economicamente o país.
(*) Economista. Cursou doutorado de economia na Unicamp. Ex-técnico do IPEA.

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