sábado, 23 de julho de 2016

União, Estado ou Munícipio? Aprenda o que é federalismo e saiba com quem reclamar do quê



Por Thiago Trung*

Qual é, exatamente, o problema com a educação do país? Quem é o responsável?

Falar que a educação é de péssima qualidade já virou tão clichê que ninguém aguenta mais (e, apenas para dar uma alfinetada para nos tirar da letargia, ficar repetindo isso à exaustão não nos faz uma pessoa crítica, só demagógica).

Porém, é importante conhecer a competência de cada ente federativo para realmente qualificar o debate político e não sair falando bobeira por aí, posando de engajado.

Estamos progredindo e chegamos ao terceiro texto da série “Para entender política”. Depois de termos apresentado a Constituição Federal e os direitos políticos dos cidadãos, passemos a um assunto que certamente irá melhorar sua argumentação em debates políticos: o federalismo.

O artigo 1º da Constituição Federal de cara diz que “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (...)”, e dá a dica de que federalismo tem a ver com a união de esferas políticas distintas. Dando uma mão para a Constituição Federal, pode-se entender que federação seria a união de unidades públicas com autonomia política e constitucional.

As unidades políticas não são hierárquicas

Veja que interessante, um Município não está abaixo do Estado em que se insere, que, por sua vez, não está abaixo da União. Eles são, na verdade, complementares, o que não significa que o Presidente da República tenha algum poder hierárquico sobre os Governadores e Prefeitos.

A autonomia dos entes federativos é garantida de duas formas:

A primeira é estabelecendo fontes de custeio de suas atividades, seja pela instituição de tributos diretos a serem cobrados diretamente pelas unidades federativas, seja pela obrigatoriedade de repasses de receitas entre os entes federativos.

Existem, portanto, tributos federais, estaduais e municipais, e se você está indignado com a alíquota de algum deles, direcione sua crítica ao correspondente fisco: se está revoltado com o Imposto de Renda, buzine na união; se o problema é com o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação, grite com o Estado; se é com o valor do Imposto de Transmissão de Imóveis Inter-Vivos, reclame com o Município, e assim para cada um dos tributos existentes atualmente.

A segunda forma de assegurar autonomia é distribuir competências entre as unidades políticas. Jurista entende competência como autoridade ou poder para decidir sobre algum fato, e não exatamente como capacidade de realização satisfatória de algo.

Assim, dizer que Município é incompetente para legislar sobre direitos trabalhistas não é uma ofensa, mas apenas uma constatação de que não possui poder para tratar dessa matéria.

A ideia de distribuir competências é de permitir que a unidade política mais adequada trate dos temas que lhe afetam mais diretamente. Assim, assuntos considerados de interesse nacional, como segurança militar, direitos trabalhistas e normas de imigração, por exemplo, são de competência da União; assuntos de interesse local, como organização do plano diretor da cidade, são de competência municipal.

Os Estados, com algumas poucas exceções, ficaram com o que se conhece por competência remanescente, ou seja, o que não for da competência nem da União, nem dos Municípios, é dos Estados.

A divisão de interesses, como se pode imaginar, não é lá muito estanque. Justamente por essa sobreposição de interesses entre as unidades federativas é que inventaram as competências concorrentes, em contraposição às competências privativas.

Nas competências concorrentes, em que mais de um ente federativo tem interesse, a regra geral é que a União deve estabelecer regras gerais, enquanto que Estados e Municípios estabelecem regras específicas. Este assunto não é lá tão simples e dei uma boa simplificada, mas fiquemos com essa noção de que competências podem ser individuais ou compartilhadas.

Retomando o caso da educação e os papéis específicos da União, Estado e Município

Quem cuida da escola dela: município, estado ou união?
Um belo exemplo de competência concorrente é a educação, e aqui peço licença para me desviar da Constituição Federal e dar uma olhadela na legislação infraconstitucional para explicar melhor o conceito de competência concorrente, e também para discorrer um pouco sobre esse assunto que virou carne de vaca em qualquer discussão política.

O artigo 23, V, da Constituição Federal diz que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência.

A União, cumprindo seu dever de estabelecer regras gerais (previsto no artigo 22, XXIV, da Constituição Federal), aprovou a Lei n.º 9.394, com as Diretrizes e Bases da Educação. Se você tiver um tempinho, dá uma lida nela, só para se inteirar um pouco sobre o assunto.

Escolhendo apenas algumas competências mais interessantes, vemos que cabe à União:

(i) estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a garantiruma formação básica comum aos brasileiros;
(ii) assegurar um processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino.

Perceba que se julgou importante para a nação assegurar uma formação básica comum a todos seus nacionais e avaliar o resultado de tal educação. Já ouviu falar do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio)?

Então, é por isso que é o Ministério da Educação quem cuida do ENEM, e não outro órgão, pois se pretende verificar se essa base educacional comum atinge todos os cidadãos do país, e não somente de determinados Estados ou Municípios.

A União pode, também, organizar instituições de ensino por si, mas sem a obrigatoriedade de assegurar nenhum tipo de formação. Por isso vemos que existem universidades e escolas de ensino técnico federais. Os deveres de educação básica, mesmo, são dos Municípios e dos Estados.

Aos Municípios cabe oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, sendo permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino.

O Município, assim, deve priorizar o ensino fundamental e, se sobrar uma graninha, fazer creches e pré-escolas. Se ainda assim sobrar dinheiro, aí sim ele pode investir em outros níveis de ensino.

Já aos Estados cabe assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio a todos que o demandarem, lembrando que o ensino médio pode preparar o estudante para o exercício de funções técnicas. O mesmo raciocínio do Município se aplica a este caso: o Estado deve priorizar o ensino médio e técnico, depois o ensino fundamental, e só depois outros níveis de ensino.

Agora sim podemos seguir com a pergunta inicial do texto, "qual é, exatamente, o problema com a educação do país?"

É o currículo das escolas? Brigue com a União.

É a falta de creche ou um ensino fundamental porco? Culpe o Município.

É o ensino médio que não prepara para os vestibulares mais concorridos ou a falta de bons ensinos técnicos como alternativa à faculdade? Aí o negócio é com seu Estado.

Identificar com exatidão o problema que nos incomoda é o primeiro passo para podermos perseguir algo melhor e sair do discurso circular e vazio.

Indo mais fundo nas competências dos entes federativos

A União é o ente mais abrangente e tem como horizonte de preocupações questões que afetam o país em sua inteireza. Declarar guerra e celebrar paz, por exemplo, são atos que afetam a todos os brasileiros, então é natural que a competência para esses atos seja da União.

Questões monetárias – e aqui, refiro-me a questões que envolvem a nossa moeda, cuja unicidade permite a troca de bens dentro do país – e questões cambiais, que envolvem o controle das reservas de divisas internacionais, também são preocupação da União, assim como a manutenção de meios de comunicação dentro do território nacional por meio de serviço postal e da regulamentação das telecomunicações.

Mantendo essa noção de que os interesses da União são amplos, dá uma lida nos artigos 21 e 22 da Constituição Federal para ver quais são as outras competências (mesmo, vale entrar e ler). Você vai perceber que a distribuição de competências faz, pelo menos, um pouco de sentido, e, ainda que não saiba de cor todas elas, você poderá pensar suas opiniões políticas de maneira mais consciente.

Indo dos interesses mais amplos aos mais específicos, o Município tem competência para legislar sobre assuntos locais, como o plano de ocupação do solo, e organizar e prestar os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo. Entenda que a questão não tem a ver com a importância da matéria, mas sim com sua amplitude.

Só para não dizer que não falei de flores, os Estados têm competências comuns com a União, como cuidar da saúde e proteger o meio ambiente, algumas poucas competências exclusivas, como a exploração de gás canalizado e a determinação de zonas metropolitanas, e competências residuais, que, como já dito, são aquelas competências que não são nem da União, nem dos Municípios.

Este assunto é um campo fértil e entender que os entes federativos têm vidas separadas é um bom começo para avaliar de forma mais clara os governos federal, estaduais e municipais. Questões como educação, sobre a qual tratei muito brevemente, saúde e segurança são mais bem analisadas após a identificação das competências e responsabilidades de cada ator político.

Seria excelente se pudéssemos eleger um único bode expiatório para problemas dessa complexidade e malhá-lo como Judas, mas a verdade é que esses temas envolvem uma coordenação política cuja ineficiência raramente se deve a apenas um governo.

Agora não vá mais deixar os candidatos te enganarem prometendo o que está fora da alçada deles

Um último aspecto sobre as competências que eu gostaria de indicar e que talvez possa lhe ser útil ao pensar seu voto é que os partidos e os próprios candidatos devem ter propostas condizentes com os cargos que pretendem ocupar (e, de forma reflexa, nós temos que ter expectativas reais sobre o âmbito de atuação de cada cargo).

Não nos adianta de nada que um candidato a Deputado Estadual defenda o matrimônio poliafetivo ou a redução da maioridade penal, pois essas matérias são de competência privativa da União – assim, o que ele pensa ou deixa de pensar sobre esses assuntos podem indicar uma possível identificação pessoal com os ideais do candidato, mas são inúteis do ponto de vista juspolítico.

Juro que tentei me conter e tratar dos assuntos básicos de forma direta. Assim como nos outros textos, muitas questões importantes e interessantes ficaram de fora, mas os comentários estão aí para isso.

Enquanto conversamos, vou agilizar o quarto texto dessa sériepara entender política, que tratará da divisão de competências entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

* * *

Nota do editor: esse é o terceiro texto da série “Para entender política“, por meio da qual pretendemos elucidar, de maneira apartidária, conceitos políticos básicos para que possamos ter diálogos mais produtivos sobre esse tema tão importante. Afinal, é bem difícil palpitar quando não sabemos do que estamos falando. 



É advogado de propósito. Gosta de arte, música e política e acredita que sempre dá para mudar. Acredita também que Yourcenar está sempre certa, e que isso não muda nunca.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Direitos políticos: guia básico em sete pontos para ser um cidadão e exercer os seus




Por Thiago Trung*
É muito comum, no debate político pouco elegante, a alegação de que "o povo não sabe votar". Quero morrer de catapora quando ouço isso, ainda mais quando o interlocutor se julga um ente externo ao conceito de povo.

Primeiro que não existe o conceito de voto errado.

Segundo que é de uma arrogância sem tamanho presumir que o voto de um concidadão se deu por ingenuidade ou, pior, por burrice: o Brasil tem proporções continentais, uma distribuição de renda que é motivo de vergonha, cidades imensas, zonas rurais maiores ainda, locais que sofrem com a seca, regiões que sofrem com alagamentos, e cada cidadão sabe exatamente quais são os problemas que lhe afligem e onde o calo lhe aperta.

Terceiro, ninguém está completamente livre da manipulação política, por mais escolado que seja no assunto. Se somos manipulados com mentiras, estatísticas tendenciosas ou mesmo com informações incompletas, nossa energia destrutiva deve se direcionar aos agentes da manipulação, e não às vítimas. Um debate político saudável envolve a compreensão e o questionamento dos motivos que levam o concidadão a declarar voto em determinado candidato, e não a mera desqualificação do pensamento diferente do seu.

Dando prosseguimento à série Para entender política, parto agora para o segundo dos quatro textos que foram originalmente pensados para dar aos leitores do Papo de Homem um arcabouço jurídico básico sobre política.

No primeiro texto, nós entendemos que a Constituição Federal é a base do nosso ordenamento jurídico, que o poder político emana do povo e que o Estado tem suas funções distribuídas em três Poderes: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Neste texto, explico quais são exatamente os nossos direitos políticos e como a Constituição Federal pretende garantir que o poder, de fato, emane do povo.

Antes de adentrarmos aos direitos políticos, gostaria de fazer uma diferenciação terminológica. Quando lidamos com a ciência jurídica, é importante termos em mente que as palavras, além de seu significado ordinário, possuem também um significado técnico.

É muito comum, em nosso cotidiano, confundir os conceitos de nacionalidade e cidadania. Claro que essa confusão não provoca danos na nossa vida, já que todo mundo sempre acaba se entendendo, mas, como estamos tratando de política do ponto de vista jurídico, nada mais justo do que elucidar os conceitos.

1. Nacionalidade e cidadania são a mesma coisa?

Nacionalidade é o vínculo existente entre um indivíduo e um determinado Estado. As regras para obtenção e perda de nacionalidade variam de país para país. No caso brasileiro, tais regras estão, claro, na Constituição Federal.

As pessoas podem nascer ou tornar-se brasileiras. São brasileiros natos:
  • todos que nascem em território tupiniquim, ainda que tenham pais estrangeiros e desde que eles não estejam a serviço de seu país de origem;
  • os que nascem no exterior enquanto um de seus pais estiver serviço do Brasil;
  • e os que nascem no exterior, de pai ou mãe brasileira, que sejam registrados na repartição brasileira competente ou venham a residir no Brasil e optem, após atingirem a maioridade, pela nacionalidade brasileira.

Já os brasileiros naturalizados são aqueles que adquirem a nacionalidade voluntariamente, seguindo os trâmites legais aplicáveis. Essa diferenciação é importante pois os cargos mais estratégicos de nossa República somente podem ser ocupados por brasileiros natos.

É o caso dos cargos de Presidente, Vice-Presidente, Presidente da Câmara dos Deputados, Presidente do Senado Federal, Ministro do Supremo Tribunal Federal, funcionários da carreira diplomática, oficiais das Forças Armadas e Ministro de Estado da Defesa.

A Constituição Federal, assim, garante a igualdade política entre brasileiros natos e naturalizados, pero no mucho.

A nacionalidade brasileira, originária ou adquirida, é requisito para a cidadania, que é a capacidade de participar do governo e de ser representado politicamente. Assim, nem todo brasileiro é cidadão, mas todo cidadão é brasileiro.

Como se adquire essa capacidade mágica?

Fácil: basta que o indivíduo (brasileiro nato ou naturalizado) aliste-se eleitoralmente quando atingir 16 anos. Seria um bom motivo de preocupação se houvesse uma lista de requisitos do tipo ser homem, ter nascido em tal lugar, ser adepto de determinada religião, superar uma renda anual de tantos reais. E, veja que interessante, a cidadania é tão boa, mas tão boa, que nós somos obrigados a adquirí-la quando completamos 18 anos, sendo facultativa para os analfabetos, para os maiores de 70 anos e para os adolescentes entre 16 e 18 anos. Leia esta última frase com uma pontinha de ironia, porque nenhuma obrigatoriedade me parece adequada no campo político.

2. O precioso direito ao voto universal, direto e secreto

Basicamente, os direitos políticos são compostos pelos direitos de eleger-se para cargos políticos e de votar em eleições, referendos e plebiscitos.


É um pouco esquisita a forma como a Constituição se organizou, pois no capítulo de “Direitos Políticos” somente tratou das regras eleitorais pelas quais o povo intervém na estrutura governamental. Explico minha estranheza: partindo de um conceito de direitos políticos menos legalista, parece-me que também deveriam estar incluídos nesse capítulo os dispositivos sobre partidos políticos. Enfim, colocarei essa alteração na caixa de sugestões.

O artigo 14 diz que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos.

Hoje, para nós, essa redação parece a coisa mais normal do mundo, mas em um passado não tão distante o direito ao voto não era universal, não era direto e não era secreto. Em vários lugares do planeta essas garantias ainda não são realidade.

O lance de o voto ser secreto tem como objetivo evitar qualquer tipo de pressão sobre o eleitor. Não há patrão, parente, político ou bispo que possa exigir que você lhes diga sua escolha: suas decisões políticas são pessoais e somente podem ser abertas se você assim desejar. Esse sigilo também é um excelente artifício para impedir a compra de votos.

Ainda com relação às características do voto, quero fazer um comentário sobre o valor igual, o que significa dizer que cada cidadão tem direito a um voto. Daqui vem o desabafo do início do texto, pois, como já disse, a Constituição Federal dispõe que todos os cidadãos têm rigorosamente o mesmo peso eleitoral e o mesmo direito de influenciar a política do país.

3. Elegibilidade: quem pode se candidatar a quais cargos?

 

Vejamos também a outra ponta, sobre os requisitos para ser eleito ou, uma palavra mais exata, os requisitos de elegibilidade. Exige-se mais de quem quer se eleger do que de quem simplesmente vota.

Além da nacionalidade brasileira (e, para aqueles cargos que mencionei acima, a nacionalidade deve ser originária), cada cargo exige uma idade mínima que varia de 18 anos (para Vereadores) a 35 anos (para Presidente, Vice-Presidente e Senador). Adicionalmente, o candidato deve estar em pleno exercício dos direitos políticos, alistado eleitoralmente, com domicílio eleitoral no local onde pretende concorrer, e estar filiado a um partido político.

Abro um pequeno parêntese sobre os partidos políticos, porque sei da força que o apartidarismo tem tomado na sociedade brasileira.

Este texto limita-se a tratar dos fundamentos jurídicos da ação política e, sinceramente, os fundamentos jurídicos dos partidos políticos são pouco interessantes, pelo menos para este momento. A discussão sobre a pertinência da obrigatoriedade de filiação para a elegibilidade e sobre a forma como os partidos políticos atuam são discussões características da ciência política, que certamente tem muito mais a contribuir para o tema do que o direito. Sinto frustrar o leitor ao não tratar dos partidos políticos, mas me aprofundarei no tema em outro texto sobre o assunto.

Além dos requisitos para elegibilidade, existem algumas proibições, ou inelegibilidades. Como são restrições ao direito político, um dos mais caros direitos individuais, as inelegibilidades são poucas e têm o objetivo de manter a normalidade da condução do Estado e evitar o abuso de poder.

4. E quem não pode se candidatar:



A primeira inelegibilidade é a dos analfabetos.

Por mais inclusiva que seja a Constituição Federal, entendeu-se que a atividade política exige que o candidato possa escrever e ler, considerando que invariavelmente sua função, se eleito, lhe exigirá tais competências. Este assunto ficou em evidência nas últimas eleições para Deputado Federal, em que se questionou a condição de alfabetizado do candidato Tiririca, eleito por São Paulo.


É bom ressaltar que somente é necessária a alfabetização. É comum ouvirmos o discurso de que fulano não tem faculdade, ou que cicrano nem fala inglês para desqualificar um político.

Ora, ora. Esse tipo de argumentação é criticável por alguns motivos, dentre os quais destaco os seguintes:

(i) a população brasileira é heterogênea, e parece-me saudável que essa heterogeneidade se reflita também no sistema político; do mesmo jeito que pessoas com ensino superior não se sentem representadas por parlamentares menos letrados, as pessoas sem estudo formal podem ver as titulações acadêmicas com desconfiança;

(ii) nossa cultura supervaloriza a educação formal e se esquece de que há sabedoria e conhecimento prático fora das escolas e universidades;

(iii) se o político foi eleito, ele reuniu os votos de diversas pessoas que o julgaram digno para representá-las; menosprezar um político é ignorar as pessoas que se identificaram com ele.

Tente aceitar que o nosso país é por demais desigual e que um Legislativo que reflita essa desigualdade garante legitimidade a todos os extratos da população.

Digo tente aceitar porque este é um exercício saudável e estou aqui para fomentar a discussão, mas raciocínios mais oligárquicos, em que se defende que a população seja liderada por um grupo de pessoas supostamente mais esclarecidas que são capazes de discernir o que é melhor para a população, mesmo contra sua vontade, também são possíveis.

Particularmente, não partilho desse entendimento pois, embora eu consiga entender seus fundamentos, parece-me que os riscos envolvidos na concentração do poder político são maiores do que os possíveis benefícios.

Prosseguindo, outra inelegibilidade constitucional é a do terceiro mandato consecutivo para os chefes do Poder Executivo dos 3 níveis federativos. Em outros termos, permite-se a reeleição consecutiva de Presidente, Governador e Prefeito uma única vez, de modo a evitar que uma pessoa se perpetue no Poder.

Se você prestar atenção na Constituição, vai perceber que o §5° (lê-se parágrafo quinto) do art. 14 original está riscado, e que há uma nova redação de 1997. Isso porque a redação original de 1988 não previa a possibilidade de reeleição, que só foi estabelecida depois de muita discussão política.

Uma inelegibilidade semelhante recai sobre cônjuge e parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, dos chefes do Executivo (presidentes, governadores e prefeitos) no território de jurisdição do titular, evitando-se a criação de clãs familiares no poder.

Por fim, a última inelegibilidade prevista constitucionalmente é aquela referente aos militares, que não podem exercer cargos eletivos juntamente com suas carreiras. Este dispositivo é uma clara resposta ao período anterior a 1988, em que o país viveu sob uma ditadura militar. O trauma foi grande e acho particularmente benéfica essa separação entre domínio técnico da força e poder político.

Considerando que a Constituição Federal tem o propósito de ser um documento básico, é natural que diversos assuntos sejam direcionados para tratamento infraconstitucional (ou seja, assuntos tratados em leis de hierarquia inferior à da Constituição).

Isso ocorre com as inelegibilidades, que, de acordo com a própria Constituição, podem ser criadas via lei complementar. É o que ocorre, por exemplo, com a Lei da Ficha Limpa, que alterou a Lei Complementar 64 e que resultou nisso aqui: 14 mil fichas-sujas devem ser impedidos de disputar as eleições esse ano.

Como essas leis são extensas e detalhadas, sugiro que você dê uma lida nelas sozinho. Se ficar com muita preguiça, o resumo é que se o cara vacilou forte, ele não vai poder se eleger.

5. Como plebiscitos e referendos funcionam? Eles são iguais?

 

Os direitos de votar e ser votado fazem parte da democracia indireta adotada no Brasil, segundo a qual a eleição de nossos representantes é direta, mas o efetivo exercício político é feito indiretamente pelos representantes.

Existem, contudo, momentos em que o processo de tomada de decisões políticas pode se dar diretamente, por meio de uma consulta popular que pode tomar a forma de plebiscitos ou referendos.

A diferença entre eles é que o plebiscito é realizado antes da criação de determinado ato legislativo, enquanto que o referendo é convocado após sua criação para que o eleitorado o aceite ou rejeite.

As consultas populares são exceções em nosso sistema político e se justificam em questões de alto impacto social, como ocorreu com o Plebiscito de 1993, em que a população escolheu entre monarquia ou república e parlamentarismo ou presidencialismo, e com o Referendo de 2005, sobre o estatuto do desarmamento.

Com a agitação social de junho de 2013, um debate bastante saudável foi instaurado sobre uma possível consulta popular referente à reforma política, mas o assunto esfriou junto com os ânimos dos brasileiros.

6. Iniciativa popular: o mecanismo por meio do qual você pode participar diretamente

 

Um outro instrumento de participação direta previsto pela Constituição Federal é a iniciativa popular, que é a proposta de legislação que brota diretamente do povo, e não de seus representantes.

No Brasil, a iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, 1% do eleitorado nacional (atualmente, 1.4 milhão de pessoas), distribuído por pelo menos cinco Estados, com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles. Dá um trabalhão e é um baita desafio, é verdade, mas pensa que as dificuldades para mobilização popular em 1988 eram muito maiores do que hoje.

Se antes a iniciativa popular poderia ser apenas uma previsão formal ou, pior, uma ferramenta disponível somente aos setores da população que detinham influência em pelo menos 5 Estados da União, o avanço dos meios de telecomunicações mudou essa situação ao permitir uma conexão sem fronteiras físicas aos concidadãos do país.

A própria lei da Ficha Limpa, da qual falei acima, é resultado da iniciativa popular. Ela é o quarto projeto dessa natureza a se tornar lei. Bacana, né?

7. É possível perder os direitos políticos?

 

Finalizando, se a Constituição Federal prevê os direitos políticos, nada mais justo que ela também diga quando tais direitos podem ser retirados. É bom saber que o constituinte foi sábio o suficiente para proibir a cassação, que é entendida como a retirada dos direitos políticos de forma unilateral pelo poder público, e limitar a perda ou a suspensão desses direitos a poucos casos.

O art. 15 dispõe que se perde definitivamente os direitos políticos em razão da perda da nacionalidade brasileira ou da recusa em cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa por motivo de crença ou convicções filosóficas ou políticas – pensa na negativa de prestação do serviço militar pelos homens, por exemplo.

Quando, contudo, o impeditivo tem natureza temporária – como uma incapacidade civil absoluta, condenação criminal transitada em julgado e improbidade administrativa – os direitos políticos são apenas suspensos, mas depois voltam.

* * *

Apenas para concluir, eu imaginava que este texto seria o menor da série, mas acabou que errei. Quando vi, já estava maior que o primeiro.

Vou parar o monólogo por aqui e deixar a discussão fluir nos comentários, que têm sido uma ótima fonte de aprendizado. E, claro, vou começar a preparar o próximo artigo sobre as competências da União, dos Estados, do Município e do Distrito Federal.

* * *
Nota do editor: esse é o segundo texto da série "Para entender política", por meio da qual pretendemos elucidar, de maneira apartidária, conceitos políticos básicos para que possamos ter diálogos mais produtivos sobre esse tema tão importante. Afinal, é bem difícil palpitar quando não sabemos do que estamos falando. 



É advogado de propósito. Gosta de arte, música e política e acredita que sempre dá para mudar. Acredita também que Yourcenar está sempre certa, e que isso não muda nunca.

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