Mostrando postagens com marcador Mídia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Mídia. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Sobre os quatro grandes oligopólios de mídia no brasil

Por Marcelo Fantaccini Brito

Os moderate heroes são aqueles que pensam que sempre a opinião do meio é a mais inteligente, um dos perigos dessa forma de pensar ocorre na discussão sobre as grandes empresas de mídia no Brasil. Há sites de esquerda que dizem que essas grandes empresas de mídia são de direita, há sites de direita que dizem que essas grandes empresas de mídia são de esquerda. A visão moderate hero, portanto, seria a de que as grandes empresas de mídia no Brasil seriam imparciais ou seriam de centro. Esta visão seria equivocada. Trata-se de uma situação onde existem duas opiniões apaixonadas opostas, onde uma está certa, a outra está errada, e a do meio também está errada.

Este texto não vai abordar todas as grandes empresas de mídia no Brasil, mas apenas as quatro mais importantes para a formação de opinião. As Organizações Globo, da família Marinho, que incluem o canal aberto da Globo, as retransmissoras locais, a Globonews, o jornal O Globo, o portal G1, a revista Época e a rádio CBN; o Grupo Abril, da família Civita, que inclui as revistas Veja e Exame; o Estado, da família Mesquita; e a Folha, da família Frias.

Pela biografia das famílias desses oligopólios, é possível concluir que a orientação política deles pende para a direita. Estes quatro grupos, pelo menos em algum momento, apoiaram o regime militar. Os editoriais dos jornais destes grupos explicitam seu posicionamento político. Atualmente, estes grupos participam ativamente do Instituto Millenium.

Mas nem sempre este posicionamento foi tão fechado e monolítico. Houve uma maior abertura política dentro destes grupos de mídia nas décadas de 1980 e 1990. É importante lembrar que Wanderley Guilherme dos Santos, Maria Rita Kehl, Luís Felipe de Alencastro, Maria Aquino, Paulo Moreira Leite e Franklin Martins já foram colunistas de periódicos destes oligopólios. Porém, ocorreu um retrocesso em meados da década de 2000. A partir deste período, estes quatro grandes grupos se tornaram um departamento de relações públicas do PSDB. Não é que a mídia dos Marinho/Civita/Mesquita/Frias é a favor do PSDB. Na verdade, esta mídia é um partido próprio, um Tea Party brasileiro. É o PSDB que é a favor da mídia dos Marinho/Civita/Mesquita/Frias. Se o PSDB um dia der algum sinal de “recaída” para a social-democracia (algo que certamente não fará em breve), este Tea Party brasileiro será contra.

A Folha é um pouco diferente dos demais. Tem colunistas de esquerda como Jânio de Freitas, Laura Carvalho, Guilherme Boulos, Vladimir Safatle e Gregório Duvivier. Publica de vez em quando algumas denúncias contra políticos do PSDB. Mas ainda assim, as posições defendidas nos editoriais são semelhantes às dos três outros grandes grupos de mídia. E causa preocupação a perda de participação da Folha no jornal Valor Econômico, que passará a pertencer apenas à Globo. Provavelmente, haverá perda de pluralidade.

Millor dizia que “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. Diante do governo Temer e de governos estaduais e municipais de partidos da base aliada, o que se vê, portanto, não é imprensa, e sim armazém de secos e molhados. Alguns atritos com o governo Temer aparecem quando há alguns atritos do PSDB com o governo Temer. E agora neste governo Temer, os quatro grandes oligopólios de mídia recebem generosas verbas de publicidade, mais do que já recebiam durante o governo Dilma.

Percebemos como estes grandes oligopólios de mídia se comportam como departamentos de relações públicas do PSDB quando percebemos grandes semelhanças das colunas e dos editoriais com os discursos dos políticos do PSDB e com as propagandas eleitorais deste partido. Frequentemente, encontramos a expressão “projeto de poder do PT”. Ou a afirmação de que “o PT divide o Brasil em nós e eles”. Quem faz esta afirmação não percebe que ao fazê-la, já está também criando uma divisão entre nós e eles. Colunistas desses grupos de mídia frequentemente apontam o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso como lindo e maravilhoso, ignorando as muitas crises econômicas e a crise energética que ocorreram em seu governo. Verifica-se também os dois pesos e as duas medidas na cobertura da Satiagraha e da Lava Jato. Na Satiagraha, prevaleceu o garantismo, em parceria com Gilmar Mendes. Na Lava Jato, prevaleceu o punitivismo. Importante lembrar: a Satiagraha ocorreu em 2008. O principal alvo era o Daniel Dantas. Sua irmã Verônica, teve uma empresa em paraíso fiscal em parceria com a filha de José Serra, também chamada Verônica. José Serra seria candidato a presidente do Brasil em 2010.

Não apenas a parte de opinião, mas a hierarquização das notícias mostra o partidarismo da mídia dos Marinho/Civita/Mesquita/Frias. Na campanha eleitoral de 2010, foi dado um destaque desproporcional a sua importância ao fato de petistas terem um dossiê contra José Serra que continha algumas violações de sigilo de imposto de renda. Ora, quem não sabia que em campanhas eleitorais os candidatos têm equipes para encontrar informações negativas sobre adversários provavelmente vai deixar de comemorar o Natal ao descobrir que Papai Noel não existe. Porém, o partidarismo neste episódio foi inútil. Serviu apenas para reforçar as convicções de quem já iria votar no José Serra. Durante o período em que o assunto dossiê esteve em maior destaque na mídia, a intenção de voto no Serra oscilou para baixo.

Alguns eleitores indecisos podem ter pensado não “esses petistas são uns desgraçados porque fazem dossiê” e sim “o que será que tinha naquele dossiê?”.

As reportagens produzidas pelas empresas dos Marinho/Civita/Mesquita/Frias contam com as aspas dos especialistas de sempre. Os especialistas de sempre são aquelas figuras bem conhecidas de quem lê jornais, revistas e sites, são do meio acadêmico, têm opiniões semelhantes às dos donos das empresas de mídia, e essas empresas sempre recorre a estes especialistas para mostrar respaldo de suas opiniões no meio acadêmico. Um alien que só conhece o Brasil através de Globo/Abril/Estado/Folha provavelmente pensará que Raul Veloso é o único brasileiro que entende de finanças públicas, que Fábio Giambiagi é o único brasileiro que entende de previdência, que Amadeo e Pastore são os únicos brasileiros que entendem de mercado de trabalho, que Cláudio Moura de Castro e Gustavo Ioschpe são os únicos brasileiros que entendem de educação, que Demétrio Magnolli continua sendo geógrafo, e não ativista político de direita, que Marco Antônio Villa continua sendo historiador, e não ativista político de direita, que Denis Lehrer Rosenfield continua sendo filósofo, e não ativista político de direita, e que Bolívar Lamounier continua sendo cientista político, e não ativista político de direita.

Quem são as maiores vítimas da partidarização dos quatro grandes oligopólios de mídia? O PT? Os demais partidos de esquerda? Não. As maiores vítimas são a democracia brasileira, os cidadãos que querem ser bem informados, a qualidade da informação. O PT até que soube usar a seu favor a partidarização dos quatro grandes oligopólios de mídia. Há uma rede de sites pró PT formados por jornalistas que antes faziam parte dos oligopólios de mídia. Diferente de Globo/Abril/Estado/Folha, estes sites assumem ser partidários e voltados para o público que procuram opinião. Porém, alguns destes sites também tiveram algumas posições que merecem ser criticadas. Houve um site destes que criticou o Joaquim Barbosa pelo fato dele ter esposa branca. Ás vezes vemos alguns destes sites desconfiarem que o Ibope e o Datafolha estão subestimando a votação do PT. Muitas vezes, estes dois institutos acabam subestimando a direita. Quando ao resultado da votação do impeachment no plenário da Câmara de Deputados, os oligopólios de mídia acertaram mais do que os sites favoráveis ao PT.

Todos já ouviram na infância a fábula do mentiroso. Aquela que diz que havia um menino que sempre mentia. Um dia ele disse uma verdade, ninguém acreditou nele por causa de sua fama, e o resultado foi trágico. O mesmo vale para a mídia Globo/Abril/Estado/Folha. Essa mídia exerce um partidarismo tão forte pró-PSDB, que mesmo em algumas vezes em que notícias favoráveis ao PSDB e contrárias ao PT são verdadeiras, haverá um pequeno público leitor de sites pró-PT que não acreditará nessas notícias. Algumas vezes, sites pró-PT consideram que determinado escândalo de corrupção envolvendo políticos do PT é equivalente a algum escândalo de corrupção envolvendo políticos do PSDB. Estes sites criticam os quatro grandes oligopólios de mídia por não dar cobertura do mesmo tamanho aos diferentes escândalos, por dar mais espaço ao escândalo envolvendo o PT. A mídia Globo/Abril/Estado/Folha algumas vezes pode alegar que os escândalos não são equivalentes e não merecem o mesmo tamanho de cobertura porque há diferença de dinheiro envolvido, de quantidade de provas… Essa mídia pode até estar certa em alguns casos. Mas como no geral apresenta um grande partidarismo pró-PSDB, haverá o pequeno grupo de leitores dos sites pró-PT que não acreditará.

De acordo com a narrativa petista, a AP 470 teve como objetivo eliminar o maior partido de esquerda do Brasil, para viabilizar a chegada da direita ao poder, que dificilmente ocorreria em situações normais. Não gosto desta narrativa porque parece defesa da impunidade de políticos que fizeram coisas erradas pelo “bem maior”. Mas alguns órgãos de mídia, ao fazer pressão para que o julgamento ocorresse em período de campanha eleitoral, forneceram combustível para esta narrativa. O fato de Merval Pereira, colunista com orientação ideológica claramente definida, ter escrito o livro sobre o julgamento, também forneceu combustível para esta narrativa.

Quando colunistas ou mesmo donos destes quatro grandes oligopólios de mídia resolvem refutar a afirmativa de que eles são departamento de relações públicas do PSDB, a maneira através da qual eles fazem isso contribui mais para confirmar a afirmativa do que para refutar.

Há consequências muito ruins para a democracia quando existe a percepção generalizada de que a mídia que transmite notícias não é confiável. Mas como a mídia que transmite notícias realmente não é confiável, infelizmente é necessário que exista essa percepção. Como consequência da descrença na grande mídia, existe a abertura de grande espaço para picaretagens. Sites de esquerda críticos da grande mídia não são isentos de picaretagem. É importante lembrar também que existem sites de direita, páginas de direita no Facebook que também criticam a grande mídia brasileira e que mostram “coisas que a mídia não mostra”. Difundem aberrações como a de que todas as famílias de presidiários recebem auxílio-reclusão, que as vacinas foram causadoras da microcefalia, que a Dilma ganhou porque as urnas eletrônicas estavam violadas, que o aquecimento global é uma invenção esquerdista. Apesar da grande mídia brasileira pender para a direita, essas aberrações não apareceram na grande mídia e sim em sites e páginas de direita de acham que a grande mídia é de esquerda.

É uma ingenuidade achar que existem muitas pessoas de direita somente porque a grande mídia é de direita. Pessoas de direita existiriam de qualquer maneira, e existe um público, com poder de consumir produtos que fazem publicidade, que quer conteúdo de direita. Pablo Ortellado mostrou um estudo interessante, que mostra que o número de matérias da grande mídia sobre a Lava Jato não declinou depois da votação do impeachment no plenário da Câmara no dia 17 de abril, mas o número de compartilhamentos no Facebook de matérias sobre a Lava Jato depois deste dia caiu bruscamente. Isto mostra que não é só a grande mídia que quer instrumentalizar o combate à corrupção no Brasil com o objetivo único de ter um governo de direita, e que os leitores da mídia seriam simplesmente manipulados coitados. Na verdade, uma grande parcela da população brasileira deseja deliberadamente instrumentalizar o combate à corrupção no Brasil com o objetivo único de ter um governo de direita.

Antes de concluir, é importante lembrar que este posicionamento ideológico da grande mídia não se restringe ao Brasil. É certo que no Brasil isto é mais acentuado. Basta ver a diferença de posicionamento entre a grande mídia brasileira e a grande mídia estrangeira sobre o impeachment da Dilma. Isto pode ser visto já em 2009, com a diferença de cobertura sobre a deposição de Zelaya em Honduras. A grande mídia de primeiro mundo teve uma visão bem mais crítica do que a grande mídia brasileira e hondurenha. Ainda assim, no mundo todo, para fornecer notícias é preciso ter muito dinheiro, afinal, o custo não é pequeno, e, portanto, quem fornece notícias tem orientação ideológica de quem tem muito dinheiro. Quem não tem dinheiro, como os criadores deste site que você está lendo neste exato momento, só pode produzir opinião.

O que fazer? Censura? Nem fodendo! Todos os governos devem ser fiscalizados, incluindo os governos progressistas. Mas governos que não tem orientação ideológica semelhante à das grandes empresas de mídia poderiam ser menos generosos com verbas de publicidade. Além disso, uma lei anti-oligopólio semelhante a dos Estados Unidos poderia ser pensada para o Brasil. É um absurdo que as Organizações Globo seja um grupo que tenha canal de televisão aberta, canais de televisão por assinatura, comercialização de pacotes de televisão por assinatura, portal de notícias de Internet, estação de rádio, jornais, revistas, estúdio de cinema, gravadora e editora de livros escolares. Este grupo empresarial poderia ser compulsoriamente repartido em três ou até mais.

Organizações de extrema-direita, alegando que existe doutrinação esquerdista nas escolas (o que não é verdade), querem criar o Escola Sem Partido, para estabelecer censura na atividade docente. O criador do movimento argumenta que professor não deveria ter liberdade de expressão porque sua audiência é cativa, ou seja, jovens são obrigados a ir para a escola. Baseado neste argumento, organizações de esquerda, alegando que existe doutrinação direitista na imprensa (o que é verdade), poderiam tentar criar o Imprensa Sem Partido. Assim como a escola, os jornais, os sites e os canais de televisão que transmitem notícias têm audiência cativa. É necessário estar bem informado para conseguir emprego e sobreviver. Eu gosto de sites alternativos e de perfis alternativos nas redes sociais que criticam a grande mídia porque eu gosto de diversidade de opinião. Eu inclusive colaboro com um site alternativo de opinião, este que você está lendo agora. Mas mesmo sendo muito crítico, não tenho como escapar da grande mídia para saber as notícias.

É óbvio, não sugiro a criação de uma Imprensa Sem Partido para não dar legitimidade a uma Escola Sem Partido. Nenhuma forma de censura deve ser aceita. Mas poderiam ser pensadas leis para obrigar quem fornece notícias a fornecer opiniões diversas, não apenas as dos donos dos veículos.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Mídia, poder e democracia: teoria e práxis dos meios de comunicação

Por Francisco Fonseca



RESUMO
Este artigo analisa conceitual e empiricamente o papel da mídia, sobretudo a brasileira, perante a democracia, criticando-se a suposta atuação pública de seus órgãos tendo em vista seu caráter privado e mercantil. Por fim, defende-se o controle social democrático da mesma.
Palavras-chave: mídia; democracia; esfera pública; mercadoria; controle social.


ABSTRACT
This paper analyzes conceptually and empirically the role of the media for the democracy, specially in the Brazilian case. It criticizes the presumed public action of the media, because of its private and mercantile nature. It defends the thesis of the social and democratic control of the media.
Key words: Media; democracy; public sphere; commodities; social control.



Os conflitos sociais, das mais variadas ordens, são possibilitados na democracia pelas instituições e pelas normas legais, assim como pelos pactos entre as classes sociais. Nesse sentido, não deixa de ser um truísmo a constatação de que, independentemente da forma e do sistema de governo uma democracia só poderá assim ser considerada se na esfera pública os diversos interesses puderem se manifestar: por esfera pública entendemos a arena em que se mesclam interessem comuns e de classes, "comuns" quanto à lógica da Nação, da identidade nacional, do Estado nacional, e "de classes" no que tange a interesses sociais imanentemente distintos, embora possam, em determinadas conjunturas e dependendo dos arranjos políticos, se assemelharem (Offe, 1984).

Considerando que essa premissa não necessita ser aprofundada, é fato que a mídia - entendida como o complexo de meios de comunicação que envolve mensagem e recepção, por formas diversas, cuja manipulação dos elementos simbólicos é sua característica central (Eagleton, 1991) - representa uma forma de poder que, nas sociedades "de massa", possui papéis extremamente significativos, tais como: influir na formação das agendas públicas e governamentais; intermediar relações sociais entre grupos distintos (Capelato, 1988); influenciar a opinião de inúmeras pessoas sobre temas específicos; participar das contendas políticas, em sentido lato (defesa ou veto de uma causa, por exemplo) e estrito (apoio a governos, partidos ou candidatos); e atuar como "aparelhos ideológicos" capazes de organizar interesses. Quanto a esses, em determinadas circunstâncias atuam à guisa de "partidos políticos" ou "intelectuais coletivos e orgânicos" de grupos específicos (Coutinho, 1994). Esses papéis são ocultados sob o lema do "dever da informação", que seria "neutra", "independente", "apartidária" e "a-ideológica", características invariavelmente alegadas pelos órgãos da mídia ao retratar, de forma cabotina, sua atuação.

Dessa forma, a mídia, ao participar da esfera pública como "prestadora de serviços", isto é, como entidades de "comunicação social", teria uma função imprescindível nas democracias: informar sobre os acontecimentos levando às pessoas uma gama de dados que, sem esse serviço, não teriam condição de conhecer outras realidades que não as vivenciadas ou relatadas por pessoas próximas. Mais importante, os órgãos da mídia fariam a fiscalização do Estado, exercendo assim a forma mais bem acabada de "controle social": em relação ao dinheiro público, às ações públicas, numa palavra, aos negócios públicos.

Note-se, contudo, que os órgãos da mídia - emissoras de tv, rádios, jornais, revistas, portais - atuantes na esfera pública são em larga medida empresas privadas que, como tal, objetivam o lucro e agem segundo a lógica e os interesses privados dos grupos que representam. Embora a ação da mídia seja complexa, essas características são cruciais para uma definição inicial dessa relação entre agentes privados e esfera pública. Afinal, se todos os possuidores de poder precisam ser responsabilizados - à luz do liberalismo de Os federalistas, o que implica a teoria dos "freios e contrapesos" -, tais como os agentes públicos e mesmo outros agentes privados, para os quais há meios de fiscalizar-lhes, e se a atuação dos órgãos da mídia tem como pressuposto a lógica privada, a questão que se coloca é: como compreender a sua atuação na esfera pública, em que a democracia é elemento-chave?

Tomando-se esses elementos como fundantes para a compreensão do papel da mídia na democracia, sobretudo na democracia brasileira ao longo do século XX, observaremos as seguintes questões neste texto: a constituição da "política informacional" no século XX e a construção da "sociedade midiática"; as teorias políticas sobre a democracia e as falsas confluências estabelecidas entre mídia e democracia; a necessidade de um marco conceitual capaz de compreender seu papel; o papel dos grandes periódicos na formação da agenda neoliberal e perante o conflito distributivo (entre capital e trabalho) nas décadas de 1980 e 1990.

A "política informacional"

(...) a mídia eletrônica (não só o rádio e a televisão, mas todas as formas de comunicação, tais como o jornal e a internet) passou a se tornar o espaço privilegiado da política. Não que toda a política possa ser reduzida a imagens, sons ou manipulações simbólicas. Contudo, sem a mídia, não há meios de adquirir ou exercer poder. Portanto, todos [os partidos políticos, de ideologias distintas] acabam entrando no mesmo jogo, embora não da mesma forma ou com o mesmo propósito. (Castells, 2000, p. 367)

Segundo Castells, a "política informacional" compõe o quadro de que as sociedades contemporâneas são fundamentalmente midiáticas, isto é, suas relações sociais e de poder são intermediadas pelas diversas modalidades da mídia. O jogo político (partidário e parlamentar) teria de se adequar às regras definidas pela mídia, em que o espetáculo e o entretenimento se fundem com as notícias. Assim, o espaço "público" seria, em larga medida, agendado pelo sistema midiático, que daria os contornos do que seria ou não legítimo, e do que deveria ou não ser prioritário. Mesmo que a vida política seja mais complexa e conflituosa do que a mídia retrata - o que explica, aliás, as mudanças na sociedade -, o fato é que o sistema midiático enquadra, emoldura em boa medida os próprios conflitos:

(...) em virtude dos efeitos convergentes da crise dos sistemas políticos tradicionais e do grau de penetrabilidade bem maior dos novos meios de comunicação, a comunicação e as informações políticas são capturadas essencialmente no espaço da mídia. Tudo o que fica de fora do alcance da mídia assume a condição de marginalidade política. O que acontece nesse espaço político dominado pela mídia não é determinado por ela: trata-se de um processo social e político aberto. Contudo, a lógica e a organização da mídia eletrônica enquadram e estruturam a política. (...) [esta] "inserção" da política por sua "captura" no espaço da mídia (...) causa um impacto não só nas eleições, mas na organização política, processos decisórios e métodos de governo, em última análise alterando a natureza da relação entre Estado e sociedade. (Castells, 2000, p. 368)

Note-se que o papel da mídia é ainda mais potencializado com a crise dos sistemas representativos tradicionais (sistema partidário, representação sindical e mesmo os movimentos sociais), que cada vez cedem lugar ao chamado "terceiro setor" - denominação ampla e fugidia que congrega caridade individual, a chamada "responsabilidade social das empresas", à ação das organizações não-governamentais, entre outras tantas ações. Esse vazio é crescentemente ocupado pela mídia, particularmente por meio da "política informacional". Como diz Castells, embora os conflitos permaneçam e se complexifiquem, tendo em vista a política ser um terreno aberto, seu enquadramento passa pela mídia, pois é ela o agente que faz a intermediação das relações sociais, enfatize-se. Dessa forma, como os partidos são, em diversos lugares do mundo, cada vez menos representativos, os sindicatos fracos e com decrescente número de filiados, e as ideologias contrastantes ao neoliberalismo menos vigorosas, um tal enquadramento e uma tal intermediação potencializam um poder crescentemente perigoso à luz da teoria democrática.

Reitere-se que, ao falarmos da mídia, estamos nos referindo a um sistema com diversas modalidades que se integram, pois:

(...) a televisão, os jornais e o rádio funcionam como um sistema integrado, em que os jornais relatam o evento e elaboram análises, a televisão o digere e divulga ao grande público, e o rádio oferece a oportunidade de participação ao cidadão, além de abrir espaço a debates político-partidários direcionados sobre as questões levantadas pela televisão. (Castells, 2000, p. 376)

Como se nota, as diversas modalidades têm papéis distintos, mas conjugados. Embora não ajam necessariamente de forma uníssona em termos ideológicos, seu modus operandi é similar na medida em que provém de um sistema orgânico em que as notícias associam-se ao espetáculo, ao entretenimento, à lógica mercantil da audiência (no caso das tvs e rádios) e das vendas, notadamente de publicidade, no caso dos periódicos. Esses aspectos simultaneamente empresariais e ideológicos pertencem à dinâmica da intermediação das relações sociais. Sobretudo nas circunstâncias em que os principais meios de comunicação convergem ideologicamente, caso da introdução da agenda neoliberal no Brasil e da crítica - observada perenemente - aos movimentos sociais, o enquadramento ideológico conjuga-se ao seu modus operandi, como veremos.

Segundo Castells, ao lado das aludidas mudanças estruturais na representação política em perspectiva global - presentes em maior ou menor escala em cada país ou região -, o próprio sistema político formal é impactado pelo sistema informacional:

À crise de legitimidade do Estado-Nação acrescente-se a falta de credibilidade do sistema político, fundamentado na concorrência aberta entre partidos. Capturado na arena da mídia, reduzido a lideranças personalizadas, dependente de sofisticados recursos de manipulação tecnológica, induzido a práticas ilícitas para obtenção de fundos de campanha, conduzido pela política do escândalo, o sistema partidário vem perdendo seu apelo e confiabilidade e, para todos os efeitos, é considerado um resquício burocrático destituído da fé pública. (Castells, 2000, p. 402)

quarta-feira, 17 de junho de 2015

O lugar da mídia no debate político


Por Renata Mielli, no blog Janela sobre a palavra

Nos últimos anos, as consecutivas vitórias eleitorais de uma coalizão de centro-esquerda no país levaram ao acirramento da disputa política nacional, com a elevação do tom oposicionista que parcela majoritária da mídia no Brasil assumiu diante do governo.

A cada derrota eleitoral e diante de uma direita desorganizada partidariamente, sem um centro político de liderança, a mídia assumiu o papel não de porta-voz dos setores conservadores e da elite econômica nacional, mas de organizadora e liderança da direita, pautando os temas em debate e indo além: editoriais de alguns jornais chegaram, ao longo deste período, a dar recados e passas-moleques em suas próprias lideranças.

Ao travar e fazer parte da disputa política assumindo a liderança de um campo, a mídia se uniformizou de maneira talvez nunca antes vista no Brasil. Um discurso único, com manchetes iguais para atingirem o mesmo objetivo: derrotar o governo.

A escalada oposicionista foi ganhando outras dimensões e alimentando setores reacionários da sociedade, que saíram do armário e estão na ofensiva política, colocando na ordem do dia temas de restrição de direitos humanos como a redução da maioridade penal, de criminalização do aborto, de maior controle da política pela esfera empresarial privada. Um discurso do ódio tem sido cotidianamente promovido, incentivado e potencializado pela mídia.

Pautas que procuram legitimar a homofobia, a xenofobia, o racismo, o machismo e tudo quanto é preconceito ganham cada vez mais espaço. A mídia tem assistido essa escalada como um efeito colateral, que até pode ser incômodo, mas de menor importância diante do seu objetivo central. Ou seja, tem sido conivente com esse discurso.

A expressão maior dessa agenda conservadora é Eduardo Cunha. Investido do poder de presidente da Câmara dos Deputados, Cunha tem misturado religião e política, rasgando o caráter laico do Estado, tal qual definido pela Constituição Federal de 1988, e vem liderando uma verdadeira cruzada religiosa em prol da família, da igreja e de Deus. Sobre isso, ler o excelente artigo do jornalista Renato Rovai (Não em nome de deus, porque em nome dele vale tudo). Talvez um dos pontos altos desse "parlamentarismo religioso" tenha sido a oração do Pai Nosso no plenário da Câmara dos Deputados. Fico imaginando o que aconteceria se algum parlamentar tentasse, ali, entoar um ponto de candomblé....

Neste sentido, o editorial do jornal Folha de S.Paulo deste domingo, 14/06, Submissão, não me surpreende e nem tampouco deve ser lido como uma mea-culpado jornal.

Isso porque a imagem da Folha, desde a redemocratização, tem sido construída em cima da ideia de um jornal moderno e plural, que abraça os direitos humanos, mas sempre alinhado aos postulados neoliberais na economia, que têm como ícones o PSDB paulista. Ao contrário do Estadão, que tem tradição estritamente liberal, com viés conservador para todas as pautas ligadas aos direitos humanos, refratário à modernidade e defensor do liberalismo econômico clássico.

No último período, essa “diretriz politicamente correta" da Folha ficou secundarizada diante do vale tudo da disputa política para destruir o governo. O editorial em questão tenta reequilibrar essa equação.

Ainda assim, a restrição que a Folha faz ao presidente da Câmara não é pelas suas posições políticas, como fica claro no trecho: “Seria equivocado criticar seu presidente por ter finalmente posto em votação algo que se arrastava há anos nos labirintos da Casa, como a reforma política”. Apesar de criticar a manobra que ele realizou para votar o distritão.

Se Cunha descesse do altar religioso para atuar na Câmara apenas em defesa das posições políticas que contam com o apoio do jornal ele não seria “crucificado”. O perigo está na religião e não na política. Reconhecer isso é muito, mas não basta. 

Claro que em um momento delicado da atual situação política é importantíssimo somar forças aos que querem colocar freios à tentativa de corromper o caráter laico do Estado brasileiro, que querem impor à sociedade seus valores religiosos e que não estão em sintonia com o interesse público. 

O editorial da Folha conclui conclamando que não haja uma submissão diante desses valores: “os inquisidores da irmandade evangélica, os demagogos da bala e da tortura avançam sobre a ordem democrática e sobre a cultura liberal do Estado; que, diante deles, não prevaleça a submissão”.

Apesar do posicionamento da Folha ser importante, vale dizer que na verdade, o que não pode prevalecer é a conivência. Porque ao obstruir um debate amplo e plural sobre os vários temas, a mídia na verdade torna-se conivente com a prática que tem sido adotada por Cunha. Mesmo a Folha, para não dar espaço e voz aos movimentos sociais e às lideranças políticas da esquerda que ela luta para enterrar, também torna-se conivente com o retrocesso imposto por Cunha. 


Então, o que precisa se combater é exatamente a conivência. Esperamos que a Folha, a partir do seu editorial, além de não se submeter, deixe de ser conivente com este processo.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Entenda como funciona a máfia midiática



Vídeo dividido em três partes, mostra jornalistas debatendo o impressionante poder da grande mídia brasileira que, manipulando, mentindo ou omitindo, age em favor dos grandes conglomerados econômicos dos quais, aliás, ela faz parte. Por isso, em vez do compromisso com a notícia que abarque a verdade factual, a mídia simplesmente elege as pautas que venham a se encaixar nos interesses dos seus proprietários, todos alinhados com o neoliberalismo que está ruindo em todo o mundo.

Mais que o poder econômico que ela representa, a máfia midiática deixou de ser um mero instrumento do poder oligárquico - para se firmar como o próprio poder. Assim, em vez de praticar a saudável concorrência em favor da notícia, os veículos de comunicação da máfia passaram a atuar de forma coordenada para dar corpo a qualquer factoide que sirva para passar como um trator por cima dos interesses dos poderosos. Por essas e outras a blogosfera passou a chamar a mídia simplesmente de "PIG" - o Partido da Imprensa Golpista.

Mediado por Beto Almeida, do programa Brasil Nação, o programa foi ao ar em 2009 - mas continua atual como nunca. Integram o debate os experientes jornalistas Leandro Fortes, Luis Carlos Azenha e Alípio Freire.

Tal a clareza didática com que os debatedores expõem o lado perverso do jornalismo, este vídeo deveria ser matéria obrigatória para estudantes de comunicação social.


segunda-feira, 23 de março de 2015

A cultura do ódio, a cegueira branca e os idiotas




Por Rafael Araújo
O termo "idiota" era usado para designar aqueles indivíduos na Grécia antiga que preenchiam os requisitos para o exercício da cidadania, mas que não se ocupavam da coisa pública, que se interessavam apenas por seus projetos pessoais. Trata-se do cidadão privado, aquele que se dedica ao desenvolvimento de uma habilidade pessoal e deixa de lado a cidade, deixa de ocupar-se com a pólis. O termo acabou, como muito acontece, ganhando outras conotações. Mas se mantivermos em mente seu sentido atual e o significado de origem, perceberemos quão útil e apropriado é chamar de idiota aquele que se interessa apenas pelo seu trabalho, deixando de lado a política e a cidadania.

Tenho estado bastante curioso por compreender o fenômeno do antipetismo que estamos vivendo nessas últimas semanas de campanha eleitoral. Certamente há quem tenha boas razões para votar no candidato do PSDB, Aécio Neves, e elas devem ser respeitadas; mas há uma questão mais profunda que tem ocorrido com o fenômeno do antipetismo, um ódio nada propositivo que tem tomado conta das pessoas e revela um problema mais complexo, que a mim, como cientista social, interessa especialmente.

O ódio ao PT precede os escândalos de corrupção, de modo que atribuir o ódio a isso seria uma explicação insuficiente. Durante a campanha de segundo turno, graças ao fato dos dois candidatos terem chances reais de chegarem à presidência da república, o fenômeno se agravou. Arriscarei aqui algumas linhas e espero que sejam motivo de reflexão a quem esse texto chegar.

O ódio ao PT pode ser examinado pelo menos a partir de três grupos de causas: 
1) o desenvolvimento histórico dialético ocorrido no Brasil desde a colonização e a forma como a luta de classe se constituiu no país; 
2) a presença hegemônica da mídia tradicional e o poder simbólico que possui; e 
3) a incapacidade de pensamento da população e o seu modo dicotômico de situar-se no mundo.

A primeira causa está na explicação histórica da forma como nossa sociedade foi construída, sob os alicerces da casa grande e da senzala. Os argumentos de Gilberto Freyre, e de tantos outros autores que se prestaram a estudar a formação da sociedade brasileira, indicam uma explicação para o fato de ainda sentirmos a presença do patriarcado em nossa pele, o resquício de um senhorio que se sente proprietário de tudo, que quer ver a todos sob controle. Esse princípio não desapareceu, ele foi modificando-se ao humor do tempo, adaptando-se aos avanços tecnológicos e aos ares da modernidade, mas em nenhum momento o sentimento de inquietação do senhor ao ver seus escravos festejarem na senzala deixou de existir. Essa especificidade da sociedade brasileira, que vem junto da miscigenação e da pluralidade cultural, não foge da lógica descrita no pensamento dialético. Existe um ódio de classe que mantém dois grandes grupos distintos e coesos no discurso, mas um único grupo que concentra a propriedade.

Esse ódio de classe é difícil de aceitar nos tempos que vivemos. Já não se fala em comunismo senão como uma quimera, o capitalismo representa um sistema tão absoluto que a própria luta de classes fica obscurecida. Nesse contexto, falar de ódio de classe parece um devaneio, mas não é. O conceito é ainda preciso por reunir tantas práticas irrefletidas e contraditórias pelas quais estamos passando. É justamente pela sua negação que demonstra sua eficácia.

A ideologia se dissipa em discursos e práticas, come pelas beiradas, demarca territórios e realiza distinções sociais. Ao reconhecermos as significativas mudanças ocorridas no país nos últimos anos, vemos o ódio se acirrar como uma resposta espontânea à perda de distinção e de privilégios de determinado grupo social. Nesse sentido, a modificação na estrutura de classes e o passado patrimonialista seria uma possibilidade de explicação do ódio, mas não a única. Diante dessa realidade, o idiota é aquele que se interessa pela recuperação de seus privilégios, pelo sucesso de seus projetos pessoais, assumindo uma perspectiva individualista e burra ao mesmo tempo. Individualista porque perde de vista a coletividade de cidadãos que se beneficiaram com as mudanças, e burra porque acredita que as melhorias sociais são ações independentes, que não o afetam positivamente. Essa burrice que leva alguns a praguejarem contra o suposto assistencialismo do governo ignora a base de discussão dos direitos humanos e o modo como ocorre a dinâmica do capital, baseada essencialmente na produção e no consumo.

A segunda causa é a cobertura que os meios de comunicação têm realizado dos fatos cotidianos de nossa política. Essa cobertura corresponde às expectativas desse mesmo eleitorado idiota, porque estão interessados no consumo das informações. São empresas, e como tal procuram o lucro. Se os espectadores, ouvintes e leitores são a resultante histórica de um longo processo de despolitização e banalização da política, esse discurso será reforçado a todo custo, com o claro intuito de manter o índice de audiência e vendas. O fato de essas informações serem voltadas para o consumo já revela sua natureza: são informações efêmeras, voltadas ao desaparecimento. Não são informações que articulam o conhecimento do mundo, que acrescentam criticidade e contribuem para o estabelecimento do homem no mundo. Essas informações de superfície, que em nada aprofundam a realidade política, cumprem o papel de serem mercadorias consumíveis. São, portanto, oportunidades de distração do homem de si mesmo, ou dito de forma mais direta, são fontes de alienação.

Por exemplo, um dos temas que ocupou as propagandas eleitorais esse ano foi a "nova política" ou a sua versão atualizada, a "mudança". Os veículos de comunicação de massa e a população despolitizada trataram de propagar essa vontade do eleitorado. Ora, nem os mídia e nem a população em geral sabem como funciona a máquina do Estado.

Não compreendem o funcionamento das instituições e o papel da burocracia. Não têm dimensão da rede de atores envolvida a cada processo decisório, as forças em disputa e o tênue equilíbrio que mantém a engrenagem funcionando. A população em geral, porque não se envolve com a coisa pública, não compreende o valor das instituições políticas e o fato de que essa complexa dinâmica é necessária para assegurar o mínimo de lisura ao sistema. Então, diante da crítica ao Estado cotidianamente construída pelos profissionais da mídia e repetida quase que de forma infantil pelo eleitor despolitizado, deduzimos que "a nova política" não passa de uma política sem corrupção. Esse é o máximo que essa parcela da população consegue definir como um programa de mudança, uma política sem corrupção. Essa reivindicação é mais do que justa. É tão justa quanto utópica, mas nem por isso deve deixar de ser buscada. Mas a rigor, essa vontade de uma outra política quando se resume a uma vontade de pôr fim a corrupção acaba por simplificar ainda mais as coisas e reforçar o afastamento dos indivíduos da coisa pública. O eleitor e cidadão passa a resumir todos os problemas ao problema da corrupção. Esse é o exato cálculo que a grande mídia faz: eleva-se a corrupção ao status de mal maior da humanidade. É isso que vemos nos comentaristas dos jornais todos os dias. Na sua tentativa de tutelar a opinião do espectador, ouvinte e leitor, acabam reforçando a ideia de que ao preocupar-se com a corrupção dos governantes ganha-se o título de cidadão. A fórmula é tão simplista que faz com que esse mesmo cidadão se esqueça dos tantos gestos corruptos que comete ao invadir a ciclovia; ao ultrapassar o semáforo vermelho; ao parar em local proibido ou em vagas para idosos; ao inventar atestados falsos para a sua declaração de ajuste de imposto de renda e tantas outras pequenas improbidades. A mesma irreflexão faz com que esses cidadãos combativos creiam piamente que o dinheiro que se perde com a corrupção e com o sustento de mordomias dos políticos seja mais do que suficiente para sanar todos os déficits da saúde, educação, mobilidade, violência e tantos outros pontos fundamentais para atingirmos o estado de bem estar social que desejamos. São contas simples que a simplificação do pensamento impede que sejam feitas.

A verdade é que a grande mídia soube selecionar muito bem os casos de corrupção a serem divulgados. Nos últimos debates a candidata Dilma Rousseff trouxe à tona alguns dos tantos escândalos que não foram investigados, o mesmo tem feito a mídia alternativa. Essa seleção realizada pela mídia tradicional foi muito eficiente na associação da corrupção ao partido dos trabalhadores, se valendo da contradição de que o mesmo partido construiu toda sua história sobre os alicerces da ética e no momento que se viu como governo acabou por jogar o jogo que ali estava e que tanto criticava. Ora, as pessoas não aceitam as contradições no dia a dia, vivem como patrulheiras umas das outras, fiscalizando seus discursos e atitudes na esperança de identificar os lapsos que serão cometidos. Isso é muito ruim, porque as ações passam a ser direcionadas a denegrir o outro com o simples objetivo de uns parecerem ser melhores que outros. As pessoas passam a fazer um cálculo de mazelas ao invés de potencializar suas virtudes.

Um processo semelhante ocorreu com o PT nos últimos anos. O ódio de classe e a cobertura dos meios de comunicação tradicionais conseguiram reduzir o problema da política à corrupção e associa-lo a um único partido. O eleitorado, se perguntado, reconhece que o problema da corrupção não é exclusividade de um único partido, mas o mesmo eleitorado usa dois pesos e duas medidas, penalizando apenas o PT. O idiota, nesse caso, é aquele que encontra nos "petralhas" um motivo para sua auto-afirmação, um mecanismo de enxergar-se como melhor e, ao mesmo tempo, de obscurecer os lapsos que comete no dia a dia. Além disso, é idiota aquele que não procura de forma ativa as informações sobre a trama da política e deixa-se informar pelos veículos de comunicação de massa. São esses mesmos veículos que vêem na simplificação e imparcialidade um negócio, uma fonte de renda, que estão construindo uma opinião pública frágil e, com isso, prestando um desserviço à democracia. A informação precisa descer às profundezas da política para que seja digna, do contrário se reduz a superficialidades e transforma o eleitorado em massa de manobra.

Por fim, a última causa que apresento para tentar compreender o ódio e a cegueira branca que estamos presenciando é a incapacidade de pensar, exatamente como Hannah Arendt a concebe. Há nos homens desses tempos sombrios uma incapacidade de situar-se entre o passado e o futuro. Dito de outra forma, em uma perspectiva complementar, o problema está no uso de uma racionalidade tradicional, tal como os frankfurtianos a descreveram, para enquadrar a complexidade do mundo a uma dicotomia moralizante. Tudo se resume a bem e mal, a certo e errado, a verdade e mentira. O leitor talvez se depare com esse argumento com espanto por não compreender o que há de mal nessa forma de enxergar o mundo. Esquece-se que nada na vida é tão simples e ambivalente e que, ao se enquadrar a realidade a uma forma tão reduzida, alimenta-se o risco da banalização.

Então, enxergar o mundo a partir de uma razão cartesiana implica ignorar a multiplicidade da vida. No fundo o que há nisso de perigoso é que a vontade de reduzir o mundo é no fundo a vontade de tê-lo sob controle. E nesse sentido, as ideias dos frankfurtianos não se afastam das de Hannah Arendt. Essa maneira que os homens aprenderam a olhar o mundo desde o platonismo revela um desejo de controle, uma vontade irascível de ter tudo e a todos sob comando e, diante dessa impossibilidade insuportável, resta produzir artificialmente uma realidade simples, perfeitamente controlada, para que a necessidade de iludir-se seja empreendida. Os nazistas souberam reduzir os problemas econômicos e sociais da Alemanha da primeira metade do século XX ao simplismo de uma única causa, problema cuja solução imediata estava na eliminação de todo aquele que não fosse ariano, que não fosse o povo eleito. Da mesma maneira se estrutura qualquer fundamentalismo religiosos e toda a barbárie que se seguiu ao esforço de resumir a fé a uma única verdade. Essa propensão do homem aos totalitarismos é, no fundo, o resultado de sua forma de pensar, realidade tão horrível e absurda quanto desconhecida e negada. Há no homem uma incapacidade de enxergar ao outro, mas também de enxergar a si mesmo. Mas há também um discurso iluminado, autoritário, que busca apoio a todo canto, que quer ser ouvido sem ouvir. Por isso a imagem da cegueira branca é tão apropriada para nosso tempo.

Não me parece exagero pensar que a emergência de fundamentalismos nos últimos meses seja algo tão distante do que vimos florescer na primeira metade do século XX. Temos crise econômica e social, temos crise de representatividade e temos uma mídia espetacular, bem armada para a formatação das consciências. Soma-se a isso as outras razões para o ódio levantadas anteriormente e temos um bom rol de explicações para compreender os linchamentos públicos, os discursos favoráveis à ditadura militar, o apoio a ideias injustificáveis como a esterilização de mulheres pobres ou a cura de homossexuais, e tantas outras tristes desqualificações dos discursos minoritários.

É nesse contexto que vejo o ódio ao Partido dos Trabalhadores aflorar tantos sentimentos brutais. A frase "odeio o PT" vem, em geral, seguida de uma profusão de preconceitos de classe, simplismos e preguiça de pensar. Da mesma maneira que o discurso irrefletido permite defender que o extermínio de delinquentes, homossexuais, judeus ou negros resultaria em um mundo perfeito, a extinção do PT seria a solução imediata para a política brasileira. Sem os "petralhas", o Estado seria finalmente saneado, acabaria a farra dessa gente e, finalmente poderíamos voltar ao que era antes. O discurso é tão sem sentido e tão revelador que nos obriga a perguntar se o que tínhamos antes é o que queremos para agora. Como se o Brasil antes do PT chegar ao governo fosse uma grande propaganda comercial de margarina. Esquecemos rapidamente o país que construímos nos primeiros 500 anos de nossa história, repleto de desigualdades e imperfeições e as novas gerações, tão acostumadas à superfície e à velocidade da tela, não partilham de memória alguma.

Essa última causa é mais profunda e grave que o período eleitoral em si. É a fonte de bestialidades maiores, que evitam o avanço de causas progressistas. Por essa causa, a idiotice não é apenas uma condição passageira, uma escolha periférica entre cidadãos que dão as costas para a coletividade e mergulham no individualismo. A incapacidade de pensar faz com que a condição de idiota seja equivalente à condição humana. O grande perigo disso não está simplesmente em sermos idiotas, porque trata-se de condição reversível. O perigo está no fato de que os idiotas de hoje são portadores da cegueira branca. Sem a capacidade de pensar, de enxergar-se e de ouvir ao outro, dificilmente essa situação será revertida.

Sobre o Blog

Este é um blog de ideias e notícias. Mas também de literatura, música, humor, boas histórias, bons personagens, boa comida e alguma memória. Este e um canal democrático e apartidário. Não se fundamenta em viés políticos, sejam direcionados para a Esquerda, Centro ou Direita.

Os conteúdos dos textos aqui publicados são de responsabilidade de seus autores, e nem sempre traduzem com fidelidade a forma como o autor do blog interpreta aquele tema.

Dag Vulpi

Seguir No Facebook