Mostrando postagens com marcador Filosofia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Filosofia. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Dilemas morais



Dilemas são momentos nos quais há hesitação ou inquietação quanto as nossas decisões. Experimenta-se, também, uma série de emoções e sensações, o que pode resultar em angústia. Não se trata, entretanto, de um sentimento de culpa ou de um conflito, simplesmente. Se, por exemplo, alguém experimenta uma demanda moral para agir de determinada maneira, mas possui interesses contrários a essa ação, muitos filósofos diriam que esse não é um dilema genuinamente moral.

dilema moral envolve uma situação na qual um agente está moralmente obrigado a agir, e ele ou ela precisa escolher entre duas ou mais ações possíveis, sendo que realizar uma implica em não realizar a(s) outra(s). Um questionamento surge naturalmente: como podemos aceitar que alguém esteja moralmente obrigado a realizar duas ações conflitantes?

Não seria muito difícil escolher entre desmarcar um compromisso, pessoal ou profissional, e levar uma pessoa acidentada ao hospital. Considera-se que algumas ações possam anular outras – não ao desconsiderar seus valores ou implicações morais, mas ao colocá-los em segundo plano diante do contexto da situação –, pois o valor moral que fundamenta essas ações se sobrepõe ao(s) valor(es) que fundamentam as outras opções. Muitos dilemas do cotidiano consistem exatamente na dificuldade de avaliar essa característica anuladora.

A filósofa Philippa Foot abordou muitos dilemas em seus textos e idealizou um dos mais conhecidos exemplos no meio acadêmico:

“Edward é condutor de um bonde cujos freios falharam. No trilho adiante dele, estão cinco pessoas. As margens são tão íngremes que elas não serão capazes de sair do trilho a tempo. O trilho tem um desvio à direita e Edward pode virar o bonde para este lado. Infelizmente, há uma pessoa neste trilho. Edward pode virar o bonde matando esta pessoa, ou ele pode abster-se de virar o bonde, matando os cinco. ” (THOMSON, 1976, p. 206)

A situação aproximasse do cotidiano, quando nos encontramos entre a ação e a omissão. A solução de Philippa Foot, em todo caso, toma por base a distinção entre os deveres positivos, nos quais temos uma obrigação para agir, como cuidar de crianças, e os negativos, que consistem em ações que devemos evitar, como matar um assaltante, que teriam precedência.

Judith Jarvis Thomson associa esse caso ao de um juiz que é confrontado com a exigência de que um crime seja julgado. Embora a polícia não tenha nenhum suspeito, cinco reféns morrerão se o juiz não apresentar um culpado. Os casos são certamente distintos. O condutor precisa decidir entre dois deveres negativos, o de evitar matar cinco pessoas e o de evitar matar uma pessoa, mas o médico está entre um dever negativo e outro positivo, a saber o de prestar ajuda. Por que aceitaríamos ser permissível matar um no caso do bonde, mas não aceitaríamos matar um no caso do médico?

Judith Thomson propôs uma importante revisão do exemplo original de Philippa Foot, que se tornou conhecido como o dilema do bonde. Em sua modificação, um transeunte está próximo ao local em que o bonde trava, o que traz a oportunidade de alterar a trajetória do bonde através de uma alavanca:

“Parecerá, talvez, para alguns até mesmo menos evidente que a moralidade requeira do transeunte que vire o bonde do que a moralidade requerer do condutor que vire o bonde; talvez alguns se sintam até mais desconfortáveis com a ideia de o transeunte virar o bonde do que com a ideia de o condutor virá-lo. [...] Sua escolha é, portanto, entre acionar a alavanca, caso no qual ele mata um, e não acionar a alavanca, caso no qual deixa cinco morrerem.” (THOMSON, 1985, p. 1398, tradução nossa)

A intuição de que matar um é pior do que deixar cinco morrerem é colocada em cheque com essa revisão!

Em geral, os dilemas trabalhados em filosofia são experimentos de pensamento, desenvolvidos para explicitar nossas intuições e questioná-las. Em outros casos, servem para refletirmos nas explicações teóricas dos valores morais. Além dos dilemas elaborados filosoficamente, há outros dilemas, como a escolha de Sofia, por exemplo. Temos também, em um contexto mais amplo, o dilema de Abraão, descrito no livro de Gênesis, entre obedecer a Deus e sacrificar o próprio filho.
O importante é perceber que o caráter ficcional dos dilemas não elimina sua relevância para a reflexão moral.

Marco Aurélio Caetano Oliveira é Mestre em Filosofia (UFRJ, 2012)
Especialista em Planejamento, Implementação e Gestão da Educação (UFF, 2015)
Graduado em Filosofia (UFRJ, 2010)


Referências:

FOOT, Philippa. The problem of abortion and the doctrine of double effect. In: Virtues and Vices and Other Essays in Moral Philosophy. Los Angeles: University of California Press, 1978. p. 19-32.

_____. Moral Dilemmas Revisited. In: Moral Dilemmas and other topics in Moral Philosophy. Oxford: Clarendon Press, 2002. p. 175-188.
THOMSON, Judith Jarvis. Killing, letting die and the trolley problem. The Monist, v. 59, n. 2, p. 204-217, apr. 1976. Disponível em: <https://doi.org/10.5840/monist197659224> Acesso em: 30.04.2018.

_____. The Trolley Problem. The Yale Law Journal, v. 94, n. 6, p. 1395-1415, may 1985. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/796133>. Acesso em: 20.03.2018.
Texto originalmente publicado em https://www.infoescola.com/filosofia/dilemas-morais/

A autonomia do observado, segundo a Hermenêutica


Por André Luis Silva da Silva

A partir da tradição sustentada por Dilthey, se pretendeu estabelecer uma teoria geral do modo como as objetivações da experiência humana podem ser interpretadas, defendendo a autonomia do objeto de interpretação, e à possibilidade de uma objetividade histórica na elaboração de interpretações válidas.

Dilthey adaptou o conceito de hermenêutica de Schleiermacher, como método de compreensão (doutrina ou teoria da arte de interpretar textos), tomando por base “uma análise da compreensão como tal e, incluindo no âmbito das suas investigações sobre o desenvolvimento das ciências do espírito, também prosseguiu no desenvolvimento da hermenêutica”. Schleiermacher colocou a hermenêutica, como doutrina da arte da compreensão, e enquanto disciplina, na relação com a gramática, a retórica e a dialética, sendo tal metodologia formal (HEIDEGGER, 2012).

A tradição hermenêutica de Heidegger e Gadamer orientou-se para a questão mais filosófica do que a interpretação em si mesma, defendendo que o ato da compreensão está ligado à descrição do que é; ”está a fazer ontologia e não metodologia”. Conforme seus opositores, ambos são críticos destrutivos da objetividade e pretendiam “mergulhar a hermenêutica num pântano de relatividade, sem quaisquer regras” (PALMER, 1986).

Heidegger avançou propondo que a hermenêutica, em seu significado mais moderno, seja abordada muito menos no sentido estrito de uma teoria da interpretação, mas que persiga o significado original do termo gregohermêutiká - que deriva de Hérmes, o deus mensageiro dos deuses - na realização do hermenéien (do comunicar), ou seja, da interpretação da faticidade que conduz ao encontro, visão, maneira e conceito fático. Entende ele por fático “algo que é”, articulando-se por si mesmo sobre um caráter ontológico, o qual é desse modo.

Já para Mannheim, a interpretação se ocupa da mais profunda compreensão do sentido, pois em seu conteúdo mais autêntico este somente pode ser compreendido ou interpretado. Assim sendo, as abordagens qualitativas trabalham com construtos sociais, cuja importância será reconhecida no processo interativo de pesquisa e de interpretação dos dados coletados (MANNHEIM, 1964).

Licenciatura Plena em Química (Universidade de Cruz Alta, 2004)
Mestrado em Química Inorgânica (Universidade Federal de Santa Maria, 2007)

Referências:
HEIDEGGER, Martin.  Ontologia – Hermenêutica da Faticidade. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1986.
MANNHEIM, Karl. Beiträge zur Theorie der Weltanschaungsinterpretation. Neuwied: Luchterhand, 1964.

sábado, 8 de abril de 2017

A Personalidade Fascista a partir das reflexões de Adorno e Freud


Por Michel Aires de Souza

      Em suas obras, o filósofo alemão Theodor Adorno diagnosticou que na atual sociedade administrada os controles tecnológicos dissolveram o indivíduo autônomo. A lógica do capital nivela a tudo e a todos aos imperativos da economia. Nada escapa a mão invisível do mercado, que modela não somente os bens e serviços, mas também a alma humana. A opressão do todo se impõe como uma força devastadora, impedindo os indivíduos de realizarem sua plena autonomia e liberdade. Em tal sociedade, “os sujeitos são impedidos de se saberem como sujeitos. A oferta de mercadorias que se abate qual avalanche sobre eles, contribui para isso,  da mesma forma que a indústria cultural e incontáveis mecanismos diretos e indiretos de controle”. (ADORNO apud MAAR, 2009, p.26). Desse modo, o sujeito passa a ser determinado por instâncias heterônomas. A realidade política, econômica e social determina o indivíduo em seu íntimo, naquilo que deveria ser o núcleo de sua autonomia.

      A primeira consequência da organização totalitária do mundo capitalista é o enfraquecimento do indivíduo frente as forças opressoras do todo. Para Adorno (1995), é a partir do enfraquecimento do eu que surge as tendências fascistas na sociedade.  Nesse sentido, a personalidade autoritária não é fomentada por certas ideologias políticas conservadoras, mas ela surge da impotência, da paralisia e da incapacidade do indivíduo reagir frente a racionalidade opressora do mundo administrado. O indivíduo fraco e impotente procura compensar sua fraqueza se identificando com os opressores. Ele busca nas estruturas  do poder uma satisfação imaginária por sua insignificância e  inaptidão à experiência. Na avaliação de Adorno (1995), a sobrevivência da personalidade autoritária deve-se a persistência dos pressupostos sociais objetivos que geraram o fascismo. Esta não é produzido meramente a partir de disposições subjetivas; ao contrário, é produzida pela ordem e organização econômica do mundo, que continuam obrigando a maioria das pessoas a depender de situações dadas em relação as quais são impotentes, bem como a se manter numa situação de não-emancipação. Para sobreviver, elas precisam se conformar e abrir mão daquela subjetividade autônoma, que está ligada a ideia de democracia. É a necessidade de adaptação, de identificação com existente, com o poder enquanto tal, que fomenta a personalidade fascista.

      Na década de 20, o médico e psicanalista Sigmund Freud já havia diagnosticado que o mal-estar na cultura surge de uma enorme repressão aos impulsos e desejos, sacrificando a felicidade humana e libertando os impulsos destrutivos do homem contra a civilização. Apesar desse diagnóstico  desolador,  a  realidade  mudou  muito  no  decorrer  do  século  XX. 

      Hoje vivemos em um mundo de abundância material e intelectual, onde grande parte dos impulsos e desejos humanos podem ser satisfeitos. Apesar disso, o mal-estar não desapareceu, ao contrário, tornou-se mais intenso em nossa época. Adorno (1995b) desvelou, em seus estudos, que a pressão social tornou-se muito mais aguda e os níveis de violência cresceram de forma exponencial desde a época de Freud. Ele percebeu um sentimento de claustrofobia nos indivíduos em relação ao mundo administrado. Como consequência disso,  o mal-estar surge causado por um  sentimento de enclausuramento, que os indivíduos experimentam numa situação cada vez mais socializada, como uma rede densamente conectada. Quanto mais densa é a rede, mais os indivíduos tentariam se libertar. Contudo, essa densidade impede a saída. Isso libera as forças destrutivas contra a civilização, que cada vez mais se torna   irracional e violenta.

      Quando a realidade não cumpre a promessa de felicidade e autonomia, que deveria se assegurada pela reconciliação entre os interesses individuais e o interesse coletivo, os indivíduos tornam se indiferentes a democracia ou passam a odiá-la. Com isso, liberam seus impulsos destrutivos contra a sociedade. Desse modo, a personalidade fascista é reforçada pela insatisfação e pelo ódio, produzido e reproduzido pela própria imposição e adaptação a uma realidade de opressão. A esse respeito, Bueno (2009) explica-nos  que a personalidade fascista, culturalmente semiformada, desvia a hostilidade que deveria voltar-se contra uma sociedade fria, injusta e desigual em direção a própria cultura. A gravidade disso, é que essa hostilidade é orientada aos mais frágeis na hierarquia social: os diferentes, os impotentes, inadaptados ou individuados de toda ordem. Em outras palavras, o ódio, que deveria ter por alvo as estruturas da sociedade, é descarregado contra os desamparados reais ou imaginários. Para Adorno (1995b, p.122). “um esquema sempre confirmado na história das perseguições é a de que a violência contra os fracos se dirige principalmente contra os que são considerados socialmente fracos e ao mesmo tempo – seja isto verdade ou não – felizes.”

      A educação na infância também tem um papel preponderante na formação da personalidade autoritária. É comum crianças que tiveram uma formação disciplinar e violenta tornarem-se personalidades fascistas. Todos os ritos de passagem, hábitos e trotes que existem na escola e que infligem dor física são herdeiros dessas experiências brutais; pois surgiram no seio da família e se tornaram costumes pela força do hábito na educação tradicional. Nessa forma de educação,  a virilidade, a coragem e a capacidade de suportar a dor transformam-se em valores fundamentais. A grande consequência disso é que os indivíduos tornam-se incapazes de desenvolver experiências humanas afetivas, onde se valoriza a confiança, os projetos compartilhados, o cuidado  e o carinho pelo outro. Todos aqueles que tiveram uma educação familiar severa, com pais autoritários, possuem grande probabilidade de se tornarem pessoas frias e indiferentes ao sofrimento humano.  A educação baseada na força e voltada a disciplina pode desenvolver sujeitos sados-masoquistas,  que são indiferentes a dor.  Como escreveu Adorno (1995b), a ideia de virilidade, que está ligada a capacidade de suportar dor,  há muito tempo se converteu em fachada de um masoquismo que – como mostra a psicologia – se identifica com muita facilidade ao sadismo. Por esta razão, todo aquele que é severo consigo mesmo sente-se no direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar ou reprimir.

      O desenvolvimento normal da criança não ocorre pela submissão à autoridade paterna, ao contrário, a emancipação do sujeito, como um ser autônomo, só pode se tornar realidade pela sua superação. Na teoria freudiana, a autoridade do pai é fundamental para o desenvolvimento normal da criança. Na primeira infância toda criança se identifica com a figura do pai, portanto, com uma autoridade, interiorizando-a, apropriando-a, para então ficar sabendo, por um processo sempre muito doloroso, que o pai, a figura paterna, não corresponde ao eu ideal que aprenderam dele, libertando-se assim do mesmo, e tornando-se, precisamente por essa via, pessoas emancipadas. (ADORNO, 1995c), O pai na primeira infância serve como um modelo, um princípio a ser seguido. Ao perceber que o pai não é um ser perfeito que poderia guiá-lo e protegê-lo, o indivíduo passa a confrontar seus ideias e valores de infância com a realidade de maneira critica, desse modo,  torna-se um ser consciente de si e do mundo, amadurecendo e podendo seguir seu próprio caminho.

      A superação da autoridade paterna é o caminho para o desenvolvimento do individuo  maduro e civilizado.  Contudo, no mundo contemporâneo, criou-se as condições propicias para o desenvolvimento da personalidade autoritária. Em nossa atualidade, a família como formadora da individualidade se fragmentou. Os laços familiares se tornaram frágeis por causa das exigências do mundo exterior. Hoje, família não constitui mais um núcleo fixo de produção da individualidade. Com o fim do capitalismo liberal e o advento da sociedade de massas,  a família perdeu sua centralidade e importância, ela não é mais a principal instância formadora do aparato psíquico do indivíduo, que tinha como fundamento a autoridade do pai. Hoje a formação dos jovens acontece de maneiras variadas e contraditórias. A socialização se constitui em contextos sociais múltiplos. Por esta razão, a internalização mal sucedida do superego enfraquece o ego.  Sem a autoridade paterna o Ego torna-se fragilizado, podendo assim ser determinado por instâncias heterônomas. Desse modo, o indivíduo fica enfraquecido frente as forças sociais, tornando-se receptivo a ideologias racistas e etnocêntricas.

      Quando Adorno exilou se nos EUA, fugindo do Nazismo, ele percebeu que indivíduos aparentemente normais apresentavam características fascistas, semelhantes as encontradas na Alemanha. Foi a partir daí que surgiu o estudo sobre “The Authoritariam Personality” (1950). Este trabalho foi desenvolvido em conjunto pelos teóricos de Frankfurt. É um estudo eminentemente empírico, cujo objetivo era analisar a cultura norte-americana, fazendo uma reflexão sobre a personalidade e sua relação com as condições políticas e sociais deste país. Este estudo deu continuidade aos “Estudos sobre Autoridade e Família” desenvolvido em Frankfurt. Tal como aquele, Marx e Freud são os teóricos principais que nortearam a análise da personalidade autoritária.

      Nestes estudos interdisciplinares sobre a personalidade autoritária foi criada uma escala fascista, desenvolvida a partir de questionários, entrevistas e testes psicológicos, cujo objetivo era compreender as opiniões, atitudes e comportamentos autoritários. A ideia era que fatores internos e externos se combinariam para chegar a um comportamento antissemita e de que a escala mediria algo próximo de uma estrutura latente de personalidade, determinante da receptividade do sujeito a ideologias racistas e etnocêntricas. A partir dessa escala se concluiu uma série de traços que comporiam os primeiros traços do caráter autoritário, sendo estes: convencionalismo; submissão acrítica; agressividade autoritária; destruição e cinismo; poder e rudeza; superstição e estereotipia; exteriorização; projeção; e atitudes exageradamente preocupadas do autoritário com relação aos atos da sexualidade (GOMIDE & MACIEL, 2015)

      Uma das grandes descobertas de Adorno, foi a de que todos aqueles que possuem o potencial fascista são seres incapazes de lutar por sua autonomia, são seres conformados, que acreditam no poder e na força do universal para a resolução de todos os problemas da humanidade. “Eles representam a identificação cega com o coletivo”. (ADORNO, 1995b, p. 127) Existe na personalidade autoritária o desejo de uma ordem sustentada por um grande aparato estatal, que governa com mãos de ferro, tendo como função representar o povo frente ao individuo. É nesse sentido que esse tipo de personalidade se coaduna com os valores do nacionalismo. É dai que surge o orgulho nacional e o narcisismo coletivo. É comum a esses indivíduos palavras de ordem, exaltação das forças armadas e o uso de símbolos nacionais O falso sentimento de integração, o calor de estar entre iguais, a satisfação de estar protegido frente ao poder é uma característica desses indivíduos. Desse modo, “a personalidades com tendências autoritárias identificam-se ao poder enquanto tal, independente do seu conteúdo. No fundo dispõe de um eu fraco, necessitando, para se compensarem, da identificação com grandes coletivos e da cobertura proporcionada pelos mesmos” (ADORNO, 1995a, 37)

      Freud (1996), em seu livro “Psicologia de Grupo e Análise do Ego”, de 1921, desvelou, a partir das ideias de Gustave Le Bon, as transformações psicológicas que passa o indivíduo ao fazer parte de uma coletividade, seja um partido político, uma religião, um time de futebol ou um grupo de jovens. Aquele que faz parte de um grupo reproduz sentimentos inconscientes de tempos primordiais da humanidade. Ele  adquire um enorme sentimento de poder, que o leva  a dar vazão aos seus impulsos de forma irracional. Ele sente que seus desejos emocionais podem ser facilmente realizados sem grandes consequências. Surge daí o sentimento de se fazer parte de algo maior que o indivíduo. Nos sentimos queridos e amados e, por estas razões, somos facilmente levados pelas ações e ideias do resto do grupo. Quando se participa de uma coletividade, perdemos mais facilmente a noção de controle e equilíbrio emocional. O autocontrole deixa de existir, nos tornamos mais impetuosos, mais agressivos e mais emocionais. A automotivação  fica mais sujeito as motivações do grupo.

      Na teoria psicanalítica,  o que liga os indivíduos em um grupo é a libido. Eles possuem uma necessidade inconsciente de se pertencer a uma coletividade, de viver em harmonia, ser amado e respeitado. Eles também possuem a necessidade de um líder. Ao analisar a igreja e o exército, Freud chegou a conclusão que o líder é o segundo fator depois de Eros na unificação  do grupo. Por meio dele todos os membros ligam-se uns aos outros por relações de amor (Eros). O líder mantém o grupo unido por um estado de identificação mediante seu amor e através de um catarse sobre os membros, isto é,  agindo hipnoticamente sobre o grupo. O líder personifica o “ideal do Ego”, e assume as funções de auto conservação, consciência moral e repressão. Cabe ao líder, portanto, o controle das consciências da coletividade. Ele une todos  pela  identificação uns com os outros e pela mesma  percepção da realidade.

      Freud escreveu sobre a “Psicologia do grupo e análise do Ego” antes do advento dos regimes totalitários, mas nessa obra já se delineava os motivos inconscientes da personalidade autoritária. Ele já havia diagnosticado que toda coletividade tem a tendência de ser conservadora, ama as tradições e as ilusões que lhe dão força. Os indivíduos são dominados  por uma espécie de inconsciente coletivo. Suas atitudes são sempre conservadoras, daí a perseguição a  judeus, homossexuais, negros, prostitutas e pobres. Eles adotam atitudes extremas em sua conduta ética. Muitos desses indivíduos são bem educados, têm boa formação, contudo, a capacidade intelectual do grupo é bem abaixo de seus membros isoladamente.

      No diagnóstico de Adorno, as pessoas que cegamente se enquadram em grupos ou coletivos convertem-se a si próprios em objetos. Eles são facilmente autodeterminados. Por esta razão, possuem um “caráter manipulador”, possuem disposições para tratar os outros como coisas. Ele identificou esse traço de personalidade em lideres nazistas,  como Himmler, Hoss e Eichman. Esses lideres também se distinguiam “pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado” (ADORNO, 1995b, 129). As pesquisas de adorno demonstraram que, em países democráticos, essas características também são encontradas em indivíduos aparentemente normais. O que caracteriza esses indivíduos é a “consciência coisificada”.  Em um primeiro momento, eles são manipulados como objetos a serviço de qualquer forma de poder, mas logo  se tornam manipuladores e tratam  os outros como coisas. No fundo são incapazes de fazer experiências, por isso mesmo  revelam traços de incomunicabilidade. Assim, se identificam com os doentes mentais ou personalidades psicóticas. (ADORNO, 1995b)

      O indivíduo fascista carece de consciência, é o sujeito semiformado, que é permeável a manipulação antidemocrática. Por esta razão, os regimes totalitários sempre fizeram uso dos meios de comunicação para inculcar seus valores políticos e estéticos no imaginário do povo alemão. Quando Hitler tomou o poder, uma das primeiras medidas foi criar em 13 de março de 1933 o Ministério da Propaganda, cujo diretor nomeado era Joseph Goebbels. Ele foi o grande responsável pela introdução da saudação, “Heil Hitler”, considerado uma de suas maiores realizações no campo da propaganda. Com Goebbels, a propaganda nazista atingiu todas as esferas da vida social:  nas ruas, escolas, fabricas, estádios e prédios circulavam mensagens, slogans e símbolos do partido. Ele também criou os grandes espetáculos públicos difundindo a estetização da política, universalizando os ideais hitleristas.

      Em seu ensaio sobre “Televisão e Formação”, Adorno (1995d) mostrou-nos que a indústria cultural gera modelos ideais: o modelo ideal de família, de saúde, de bom comportamento, de bom trabalhador, de boa dona de casa, de bom marido. Ela cria uma falsa imagem do que seja a vida verdadeira. Assim,  a falsa consciência é gerada na medida em que a harmonização  e deformação da vida são imperceptíveis para as pessoas. Foi desse forma que o regime totalitário na Alemanha conseguiu cooptar os cidadãos para a barbárie. A fim de reforçar seu ideário político na mentalidade da população,  fez  da propaganda no radio, na televisão e no cinema sua expressão mais influente. Através destes meios  houve a propagação de ideais como o embelezamento da vida,  rituais de limpeza,  culto ao corpo belo, forte e saudável, e a apologia da identidade nacional do povo ariano. Através da propaganda, o nacionalismo, o patriotismo, o heroismo, a xenofobia e o antissemitismo foram disseminados pela indústria cultural. Em consequência disso, levou seis milhões de judeus à morte. Desde aquela época, os meios de comunicação tornaram-se instrumentos de regressão psíquica gerando a perda da consciência crítica e tornando-se um grande incentivador da personalidade autoritária.

      Hoje, no Brasil,  os meios de comunicação de massa têm colaborado para fomentar a personalidade autoritária. Em programas sensacionalistas,  onde é explicito a violência do dia a dia, jornalistas são responsáveis por criar um tipo subjetivo, que tem conservado as formas de domínio social e têm mantido as elites conservadoras no poder. Esses programas produzem o típico cidadão conservador, semiformado, consumidor dos produtos padronizados da indústria cultural. Mas não se trata do indivíduo sem educação, mas do cidadão médio, com nível universitário, em uma dessas carreiras técnicas. Esses programas incentivam a violência, disseminam o medo,  exaltam o autoritarismo e a força policial; criam estereótipos, desenvolvem o machismo, a homofobia, o racismo e todo tipo de preconceito. Todos aqueles que não se encaixam na ideia de cidadão de bem e no sistema mental de explicações pré-determinadas pelas formas de domínio social devem ser excluídos.

      A resposta de Adorno para a resolução do problema do fascismo é a educação. A primeira exigência da educação para o Frankfutiano  é que “Auschwitz não se repita”. (ADORNO, 1995b, p. 119) Qualquer debate sobre educação,  que não leve em consideração esse princípio, não tem sentido, carece de importância. Cabe aos estabelecimentos de ensino, portanto, desvelar os mecanismos que levam as pessoas a cometerem tais atrocidade. É necessário uma consciência geral acerca desses mecanismos. Desse ponto de vista, a educação deve desenvolver  uma sensibilidade contrária a violência,  e sensível aos oprimidos,  que desvele os mecanismos de opressão da sociedade administrada, e que pense a violência e barbárie cometidas pelo mundo ocidental. A educação também deve se voltar para a crítica da ideologia, disseminada pela indústria cultural. O que se torna relevante para Adorno é que os indivíduos sejam capazes de julgar a sociedade contemporânea. Para isso, devem ter a capacidade de informação e entendimento para uma análise e avaliação das sociedades em que vivem. Assim, é através da escola que se deve fomentar a prática política que leve a cabo desenvolver  nos sujeitos a consciência das possibilidades transcendentes de liberdade. Desse modo, a educação em Adorno é uma “pedagogia do esclarecimento” onde “a educação política é levada a sério e não como simples obrigação inoportuna” (ADORNO, 1995a, p.45).

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1985

________. Educação e emancipação.  São Paulo: Paz e Terra, 1995.
________. O que significa elaborar o passado. In: Educação e emancipação.  São Paulo: Paz e Terra, 1995a
_______.  Educação após Auschwitz. In: Educação e emancipação.  São Paulo: Paz e Terra, 1995b
_______. Educação e Emancipação. In: Educação e emancipação.  São Paulo: Paz e Terra, 1995c
_______. Televisão e Formação. In: Educação e emancipação.  São Paulo: Paz e Terra, 1995d
 ________. Teoria da Semicultura. In: Revista Educação e Sociedade. Campinas: n. 56, ano XVII, dezembro de 1996, pág. 388-411.

BUENO, Sinésio F. Da dialética do esclarecimento à dialética da educação.  In: Revista Educação, Coleção Especial: Biblioteca do Professor, Adorno pensa a Educação. São Paulo: Editora Segmento, ano 2, n. 10, p.36-45, 2009.

FREUD, S. Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GOMIDE, Ana P. A & MACIEL, Ruth Marques. (2015) O legado da pesquisa The Authoritarian Personality para o campo da psicologia social. Disponível em < http://www.seer.ufu.br/index.php/perspectivasempsicologia/article/view/30854/16836> Acesso em Abril de 2016.

MAAR, Wolfgang. L. A formação da sociedade pela indústria cultural. In: Revista Educação, Coleção Especial: Biblioteca do Professor, Adorno pensa a Educação. São Paulo: Editora Segmento, ano 2, n. 10, p.26-35, 2009.

sábado, 13 de agosto de 2016

Carta a Meneceu – a Filosofia como o caminho para o bem-estar da alma


Por Andressa Fontes*

          Epicuro inicia seu livro, já dizendo que ninguém é jovem ou velho demais para dedicar-se a filosofia, pois não existe idade para se alcançar a saúde de espirito. Interligando diretamente a filosofia com a felicidade. A filosofia é de grande importância para todas as pessoas, independentemente da faixa etária, para os de idade mais elevada se sentirem mais jovens através de lembranças de momentos já vividos, e para os de idades inferiores poderem envelhecer sem medo do futuro. Diz então, que as pessoas devem cuidar das coisas que trazem felicidade a elas, pois quando não a tem, ou a se perde, faz-se de tudo para alcança-la novamente. Epicuro traz à tona diversos assuntos, acredita que uma vez entendidos, são o caminho certo para uma vida feliz, como por exemplo, a crença, morte, desejos, prazeres, autossuficiência e prudência.

          Segundo Epicuro, Deuses existem de fato, já a imagem que as pessoas têm deles, essa já não existe. Atribuem falsos juízos, fazendo com que se torne ímpio não quem não acredita em tais Deuses e sim essas pessoas que saem dizendo o que não sabem. Daí a fé de que esses Deuses causam malefícios aos ruins e benefícios aos bons.

          A morte, no entanto, outro assunto abordado no livro, Epicuro vem dizendo que ela não é nada, tanto para os vivos quanto para os mortos, e de que tolo é quem teme a ela, justamente pois quando ela está presente não há vida, e vice-versa. Visto uma vez que todo mal e todo bem acontecem através de sensações, e a morte é deixar de senti-las. Sendo assim, o mais terrível de todos os males. A maioria das pessoas foge da morte, enquanto outras já acreditam que ela seja o descanso para todos os males desta vida. Já o sábio não leva a vida como um fardo e nem a morte como um mal.

          Os desejos existem os naturais, os inúteis, alguns necessários e outros fundamentais para a felicidade, bem-estar corporal e até para a própria vida. Desejos os quais baseiam-se todas as ações e escolhas, afim de afastar as dores e medos, trazendo bem-estar corporal, mental e espiritual.

          O prazer, sem ele há sofrimento, só se sente sua falta quando este não se faz presente. É por este motivo que o prazer é o início e fim de uma vida feliz. Apesar de ser um bem inato, não é por isso que se escolhe qualquer tipo de prazer, muitas vezes por trazerem consequências um tanto desagradáveis. Todo prazer traz um bem por sua própria natureza, portando nem todos devem deixar de ser atendidos, como por exemplo, a dor, toda dor é ruim, mas nem todas devem ser evitadas. Convém então, analisar todos os prós e contras dos prazeres e sofrimentos. Diz que o fim último é o prazer, mas não prazeres sem relevância e sim o prazer que é a ausência de sofrimentos físicos e espirituais.

          A autossuficiência, considerada por Epicuro um grande bem. Não para que as pessoas se contentem com pouco, mas sim para que possam se contentar caso não tenham muito. Diz ainda que tudo o que é natural é fácil de se conseguir, e o que é sem importância que é difícil. Acredita que habituar-se a um modo de vida simples proporciona aos homens meios de enfrentar corajosamente os desafios e adversidades da vida.

          Por fim, a prudência, o principio e o bem supremo, mais preciosa do que a própria filosofia, dela que se origina todas as demais virtudes. Ensina que sem ela não existe beleza, justiça e muito menos a felicidade. Pois as virtudes estão altamente ligadas a felicidade, e a felicidade é inseparável delas.


*Andressa Fontes tem 16 anos, cursa o segundo ano no colégio Godofredo Schneider.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Um Elogio aos Idiotas


Por Carlos Cardoso Aveline na FilosofiaEsoterica
Na vida acelerada do mundo de hoje, todos desejam ser espertos, vivos e astuciosos.
 
Ninguém quer ficar para trás – quando você está indo, os outros já estão voltando. Ninguém mais diz frases com segundas intenções: dizem coisas com terceiras, quartas e quintas intenções. Frases que, com sorte, um leigo no assunto precisa de várias horas para decifrar e talvez dois ou três dias para imaginar uma resposta à altura. 
 
Em compensação, alguém que diz diretamente aquilo que pensa acaba provocando escândalo e mal-estar. É imediatamente catalogado como perigoso e tratado como idiota. A sinceridade parece contrariar as normas da convivência e da boa educação modernas. Assim, as pessoas bem educadas são amáveis, mas nem sempre se deve acreditar no que dizem. 
 
A idiotice é um tema vasto, com muitos aspectos diferentes, e está inscrita com destaque na cultura brasileira.  Um exemplo  disso são as tradicionais piadas de português.  Elas são uma projeção da brasilidade. No fundo, os portugueses idiotas das piadas somos nós. Os episódios que envolvem Manuel, Joaquim e Maria são todos parte da alma do nosso país – tanto é assim que só são conhecidos no Brasil. Em Portugal, ao contrário, circulam piadas de brasileiros.  
 
É certo que, quando examinamos a questão da inteligência e da idiotice, surgem algumas perguntas indiscretas. O que é inteligência? O que é burrice?  Quantos tipos há de idiotas?
 
Podemos dizer que inteligência é a capacidade de perceber o real.  Como há realidades muito diferentes no mundo, não existe um tipo único de inteligência. Cada situação da vida requer um tipo específico de percepção, e por isso as inteligências são múltiplas.   A idiotice e a burrice podem ser definidas como a incapacidade de perceber o real, e são tão variadas quanto as inteligências. Há, portanto, muitos tipos de idiotas. Alguns deles, inclusive, são espertalhões. Sim, há muitos idiotas que passam por inteligentes, e também grande número de  pessoas inteligentes que passam por idiotas. 
 
Além disso, quem é inteligente em uma área da vida pode ser burro em outras. Você é esperto em política e burro na hora de jogar futebol. Sua namorada pode ser menos intelectual que você, na hora de discutir filosofia, mas há aspectos da vida em que ela coloca você no chinelo. Há coisas que seus filhos  fazem bem melhor que você, como, talvez, compreender as sutilezas de um videogame ou computador. Felizmente, ter sabedoria não é saber tudo. Ter sabedoria é saber o mais importante – e administrar bem os seus talentos.
 
Dos inúmeros tipos de idiotas, um dos mais interessantes foi examinado por François Rabelais, o escritor francês do século 16. Ele abordou a imbecilidade doutoral específica dos “eruditos” que usam palavras complicadas para não dizer coisa alguma. Um deles – conta Rabelais –  fez certo dia uma longa pesquisa para saber “se uma entidade imaginária, zumbindo no vácuo, é capaz de devorar segundas intenções.”  Outro queria saber  “se uma idéia platônica, dirigindo-se para a direita sob o orifício do Caos, poderia afastar os átomos de Demócrito”. Um terceiro investigava “se a frigidez hibernal dos antípodas, passando numa linha ortogonal através da homogênea solidez do centro, podia, por uma delicada antiperístase, aquecer a convexidade dos nossos calcanhares”. Rabelais qualifica tais idiotas eruditos  como professores cegos de discípulos cegos, “que tateiam em um quarto escuro à procura de um gato preto que não está lá”. [1]  Tais indivíduos eram precursores de Rolando Lero, o grande erudito que iluminou a televisão brasileira nos anos 1990.  Não é de todo impossível  encontrar esse tipo de pesquisador fazendo teses de pós-doutorado em certas universidades.   
 
Conheço seres humanos que têm tanto medo de parecer burros que aplaudem  – ou pelo menos fingem que compreendem –  esse tipo de raciocínio longo, difícil, sem significado algum. Mas tal constrangimento é desnecessário: deixando de lado o medo de parecer idiotas, perderemos menos tempo fingindo e  seremos mais felizes.
 
O exemplo de Albert Einstein, um dos maiores gênios da ciência moderna, é ilustrativo. No início da vida, ele recusou-se a falar até os três anos de idade. Seus pais – pessoas sensatas – pensavam que fosse retardado mental. Mais tarde, quando Einstein ingressou na escola, ele foi novamente considerado imbecil. Seu biógrafo é obrigado a admitir:
 
“Para os colegas de classe, Albert era uma anomalia que não demonstrava interesse nenhum pelos esportes. Para os professores, era um idiota que não conseguia decorar nada e se comportava de modo estranho. Em vez de responder imediatamente a uma pergunta, como os outros alunos, sempre hesitava. E quando respondia, movia os lábios em silêncio, repetindo as palavras.” [2]
 
Décadas mais tarde, Einstein deu o troco. Ele qualificou o nosso moderno sistema educacional como uma  estrutura que reprime a inteligência e busca fabricar idiotas obedientes: 
 
“A humilhação e a opressão mental imposta por professores ignorantes e pretensiosos causam danos terríveis na mente jovem; danos que não podem ser reparados e que geralmente exercem influências maléficas na vida futura.”
 
E ainda:
 
“A maioria dos professores perde tempo fazendo perguntas para descobrir o que o aluno não sabe, quando a verdadeira arte consiste em descobrir o que o aluno sabe ou é capaz de saber.” [3]
 
O sábio, o santo e o idiota têm muito em comum, não só entre si, mas também com as árvores e os animais. Todos eles vivem em um estado de comunhão com todas as coisas que é independente do pensamento lógico. Isso contraria a inteligência situada no hemisfério cerebral esquerdo, que rotula e classifica todas as coisas. Essa inteligência gosta de colocar-se como se tivesse o monopólio da consciência. Esse, aliás, é um dos grandes obstáculos para a prática da meditação: a mente pensante não aceita passar o poder à mente que contempla e que compreende a verdade sem necessidade de pensamentos. 
 
A primeira frase dos famosos “Ioga Sutras de Patañjali”, o tratado milenar sobre Raja Ioga, afirma: “Ioga é a cessação das modificações da mente”.  Para alcançar a hiper-consciência, o estado mental do êxtase divino, é necessário paralisar momentaneamente a mente inferior. O sábio é um ser que renunciou à inteligência convencional e optou por uma percepção que a mente comum não consegue captar. Por isso, mesmo no século 21, se aquele que ingressa no caminho espiritual não tiver certos cuidados, pode ser considerado louco ou idiota pelos parentes e amigos. Mas, do ponto de vista do sábio, a situação se inverte e idiota é aquele que fica preso à lógica do mundo externo. 
 
O ser humano geralmente vive imerso em ilusões que ele mesmo criou. Para obter a sabedoria, ele deve aprender algumas coisas e desaprender outras. Helena Blavatsky escreveu:
 
“A primeira condição necessária para obter autoconhecimento é tornar-se profundamente consciente da ignorância; sentir com cada fibra do coração que somos incessantemente iludidos. O segundo requisito é uma convicção ainda mais profunda de que tal conhecimento – um conhecimento intuitivo e seguro – pode ser obtido por esforço próprio. A terceira condição, a mais importante, é uma determinação indômita de obter e enfrentar aquele conhecimento.” [4]
 
Quase todo o potencial da mente humana ainda está por ser desenvolvido.  A ciência reconhece que usamos uma parcela muito pequena do cérebro.  O problema não é, pois, que sejamos um tanto limitados mentalmente. O lamentável é que, sendo limitados, nos consideramos extremamente espertos. O filósofo Sócrates, escolhido como o homem mais  sábio da Grécia, explicou: 
 
 
“Eu e os homens notáveis de Atenas nada sabemos, e a única diferença entre eu e eles é que eu, nada sabendo, sei que nada sei, enquanto que eles, nada sabendo, pensam que sabem muito”.
 
Seguindo na mesma linha de raciocínio, o pensador espanhol Balthazar Gracián constatou:  
 
“O maior tolo é aquele que acha que não é, e que só os outros são. Para ser sábio não basta  parecer sábio, nem, muito menos, parecer sábio a si próprio. (....) Embora o mundo esteja cheio de tolos, ninguém se julga um deles, nem receia ser um.” [5]
 
Quando superamos a necessidade de parecer inteligentes e deixamos de lado o medo de parecer idiotas, libertamos nosso potencial criativo e a nossa capacidade de conhecer novos aspectos da consciência.  Quando temos coragem de colocar toda nossa mente em algo, parecemos tolos e distraídos do ponto de vista daqueles aspectos do mundo que optamos por ignorar completamente. Um exemplo claro disso é dado pela história do grande cientista que caminha absorto pela rua, perto da sua Universidade, quando encontra um colega e param para conversar um minuto.  Ao se despedirem,  o cientista  pergunta a seu colega:
 
“Diga-me, amigo, em que direção eu estava caminhando?” 
 
“Você estava indo para lá”, aponta o outro.
 
“Ah, obrigado”, agradece o sábio distraído.  Isso significa que eu já almocei.”
 
A relativa idiotice dos sábios tem outro exemplo no caso do famoso escritor inglês G. K. Chesterton.  Ele morava em Londres quando ainda não havia telefones, e vivia em um mundo tão abstrato que, certa vez, ficou aguardando notícias de sua esposa em uma agência de correios após mandar o  seguinte telegrama para ela:
 
“Querida, estou  no mercado Harborough. Mas onde eu deveria estar, para fazer o quê?” [6]  
 
No romance “O Príncipe Idiota”, o escritor Fiódor Dostoievsky descreve um Cristo moderno que aparece na Rússia com 26 anos de idade – e se comporta como um idiota desde todos os pontos de vista práticos. Ele não tem a couraça de auto-defesa que caracteriza o tipo moderno de  cidadão “esperto”.  Por isso as pessoas riem da cara dele e ele acha graça junto com os que o desprezam. Chamam-no de burro – e ele concorda, amavelmente, porque só sabe falar a verdade –  e percebe que, realmente,  não tem a astúcia dos seus perseguidores.
 
Leon Muishkin, o Cristo-príncipe de Dostoievsky, é epiléptico.  O escritor descreve os seus ataques como momentos de iluminação mística: “Não podia duvidar nem admitir sequer a possibilidade de dúvida: naqueles momentos havia, com efeito, beleza e oração, e aqueles instantes eram a maior síntese da vida (...). [E ele] via claramente que a conseqüência evidente desses minutos indescritíveis era a imbecilidade, o obscurecimento das suas faculdades, o idiotismo.” [7]
 
Dostoievsky está certo em mais de um sentido. Epilepsia à parte, há um fato que poucos estudiosos do caminho do autoconhecimento confessam abertamente: quando se desperta a inteligência espiritual, perde-se, irremediavelmente, a inteligência astuciosa que permite coisas como mentir com habilidade, usar a lisonja na medida certa e falar a verdade só quando ela traz vantagens. 
 
Desse despertar vem a sensação de nada saber diante do mundo. A expansão mística da consciência traz consigo uma inocência idiota em relação à realidade externa. É por isso que os sábios renunciam à agitação e a todas as formas de esperteza associadas com ela, e preferem optar por uma vida retirada. Quem deseja alcançar a consciência celestial deve abandonar a inteligência egoísta e assumir, em certos assuntos, a aparência de um abobado. 
 
“A razão expulsou Deus com chicotadas para o meio dos loucos”, escreveu Louis Pauwels.[8]  E o escritor sufi Idries Shah – grande pensador do islamismo místico–  escreveu um livro intitulado “A Sabedoria dos Idiotas”. Na abertura da obra, Idries Shah explicou:
 
“Aquilo que os homens de pensamento estreito imaginam que seja sabedoria é freqüentemente considerado loucura pelos sábios sufis. Assim os sufis, por sua vez, chamam a si mesmos de ‘idiotas’. Por uma feliz coincidência, a palavra árabe que significa ‘santo’ (wali) tem a mesma equivalência numérica que a palavra que significa ‘idiota’ (balid). Assim, temos dois motivos para ver os grandes sufis como os nossos Idiotas.” [9] 
 
A astúcia impede o autoconhecimento.   A milenar tradição chinesa conta que certa vez Confúcio procurou Lao-tzu – fundador da filosofia taoísta – e fez a ele uma complexa consulta sobre uma questão ritualística que considerava de grande  importância.  Desprezando a pergunta sofisticada, o mestre disse a Confúcio:
 
“Você precisa abandonar a sua esperteza e deixar de lado a espada da sua ambição. Os grandes sábios freqüentemente parecem tolos e estúpidos. Aqueles que obtiveram o verdadeiro aprendizado não insistem em ostentar o seu conhecimento.” [10]
 
Um dos maiores místicos cristãos de todos os tempos, São João da Cruz, estudou filosofia clássica grega na juventude. O modo como ele descreve poeticamente o paradoxo do “nada saber para perceber tudo”  coincide com a tradição socrática, mas também pode ser visto como uma ioga: 
 
“Para chegares a saborear tudo, 
Não queiras ter gosto em coisa alguma.
Para chegares a possuir tudo,
Não queiras possuir coisa alguma.
Para chegares a ser tudo,
Não queiras ser coisa alguma.
Para chegares a  saber tudo,
Não queiras saber coisa alguma.” [11]
 
E João da Cruz descreveu o seu êxtase místico nesses versos:
 
“Entrei onde não sabia,
e fiquei sem saber,
toda a ciência transcendendo.
 
Eu não sabia onde entrava,
porém, quando lá me vi,
sem saber onde estava,
grandes coisas entendi.
Não direi o que senti
pois fiquei sem saber,
toda a ciência transcendendo.
 
De paz e de piedade
era a ciência perfeita,
em profunda solidão,
diretamente entendida;
era coisa tão secreta,
que fiquei balbuciando,
toda a ciência transcendendo.
 
Estava tão enlevado,
tão absorto e desatento,
que meu sentido ficou
de todo sentir privado;
e o espírito dotado
de um entendimento sem entender
toda ciência transcendendo.” [12]
 
Embora seja verdade que nem todo idiota alcança a iluminação, é certo que todo iluminado tem algo de idiota e parecerá um tolo desde mais de um ponto de vista.  
 
O aprendiz da arte de viver deve romper os limites das chantagens do que é “politicamente correto” e deixar de lado os mecanismos da ignorância coletiva que buscam impor falsos consensos em função dos interesses desse ou daquele esquema de poder.
 
Mas, para fugir da idiotice coletiva organizada –  com sua psicologia de rebanho que proíbe o indivíduo de pensar por si mesmo –   é indispensável vencer o medo de que nos seja colocado o rótulo de ovelha negra, ou de idiota.  Só assim poderemos viver com responsabilidade própria e independência pessoal. Há uma história de Ramakrishna, o sábio indiano do século 19, que ilustra bem esse ponto:
 
“Era uma noite completamente escura, séculos atrás. De repente, um sujeito acende uma tocha para iluminar seu caminho e vai até a casa do vizinho. Ele quer pedir fogo, porque a noite está demasiado escura. Depois de muito gritar e bater na porta, o vizinho finalmente abre a porta, ouve seu pedido e responde: ‘Ah, ah, você é muito imbecil! Raciocine! Você já tem uma tocha acesa na sua mão!’ ” [13]
 
Todos nós corremos o risco de fazer como o pobre coitado que bateu na porta do vizinho. A verdade eterna e a fonte da felicidade estão em nossas próprias mãos. Só dependem de nós. Mas insistimos em procurá-las nas coisas externas e pedi-las de outras pessoas, renunciando à autonomia da nossa caminhada. 
 
Os sábios, como os idiotas, são íntegros.  Eles não fingem que são inteligentes e não têm medo de errar. Tentam, erram e conhecem o sabor da derrota.  Mas, quando acertam, são geniais. O idiota de hoje pode ser o sábio de amanhã, graças à experiência adquirida. Em compensação, aquele que não possui ânimo para tentar não tem chance alguma de aprender.
 
Por isso devemos criar uma cultura em que é permitido a cada um cair e levantar livremente. Porque somos todos apenas aprendizes. Erramos e aprendemos o tempo todo, e devemos estimular em cada ser humano a coragem de buscar – mesmo tropeçando – os seus sonhos mais elevados. Banindo da nossa cultura o medo ao ridículo, cada um se permitirá um pouco mais de deselegância e autenticidade em sua maneira de viver.
 
NOTAS:
 
[1] “Vidas de Grandes Romancistas”, por Henry Thomas e Dana Lee Thomas, Editora Globo, RJ-POA-SP, 1954, 244 pp., ver p. 32.
 
[2] “Einstein, a Ciência da Vida”, uma biografia escrita por Denis Brian, Editora Ática, SP, 1998, 551 pp., ver pp. 1, 3 e 4.
 
[3] “Assim Falou Einstein”, coletânea editada por Alice Calaprice, Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1998, 258 pp., ver pp. 64 (primeira frase da citação) e 63 (segunda frase).
 
[4] “Collected Writings of H. P. Blavatsky”, TPH, Índia/EUA,  volume VIII, 1990, p. 108.
 
[5]  “A Arte da Prudência”, Baltazar Gracián, Ed.  Martin Claret, SP, 2001, 151 pp., ver p. 102.
 
[6] “Father Brown Stories”, G.K. Chesterton, Penguin Books, England, ver Introdução. 
 
[7] “El Príncipe Idiota”, Fiódor Dostoievsky, Editorial Porrúa, S.A., México, 190 pp.,ver p. 158. Veja também o filme clássico de Akira Kurosawa baseado nesta obra, “O Idiota”, atualmente disponível em DVD.
 
[8] “Ramakrishna, o louco de Deus”, Introdução de Louis Pauwels, Planeta Especial, Fevereiro de 1995, 146 pp. em formato de livro, ver p. 09.
 
[9] “Wisdom of the Idiots”, Idries Shah, The Octagon Press, Londres, 1991, 179 pp., ver p. 5.
 
[10] “Tales of  the Taoist Immortals”, de Eva Wong, Shambhalla Inc., Boston, EUA, 2001, 168 pp., ver p. 56.
 
[11] “São João da Cruz”, Obras Completas,  Ed. Vozes, 1149 pp., ver p. 182.
 
[12] “São João da Cruz – Pequena Biografia ”, Bernard Sesé, Ed. Paulinas, SP, 176 pp., 1995, ver p. 135.  Uma tradução não tão boa do mesmo trecho pode ser encontrada  nas pp. 38 a 40 das “Obras Completas”.
 
[13] “Pictorial Parables of Sri Ramakrishna”, Advaita Ashrama, Calcutá, Índia, 65 p., 1997, p. 7.   

Sobre o Blog

Este é um blog de ideias e notícias. Mas também de literatura, música, humor, boas histórias, bons personagens, boa comida e alguma memória. Este e um canal democrático e apartidário. Não se fundamenta em viés políticos, sejam direcionados para a Esquerda, Centro ou Direita.

Os conteúdos dos textos aqui publicados são de responsabilidade de seus autores, e nem sempre traduzem com fidelidade a forma como o autor do blog interpreta aquele tema.

Dag Vulpi

Seguir No Facebook